Os Sonâmbulos

A um mês da estreia de Frei Luís de Sousa no Teatro S. João, caímos na armadilha de espreitar os ensaios. Arrependemo-nos, saímos com mais dúvidas do que certezas. Falámos com José Wallenstein e não ficámos na mesma. Ficámos pior. Afinal, a obra de Almeida Garrett não é tão "clara e evidente" como pensávamos. Uma visita guiada (?) a uma casa de alucinados e fantasmas - ou à terra de Ninguém.

Quem, como nós, sorrateiramente se introduzir na Sala Branca do TNSJ e tiver a infeliz ideia de se sentar atrás de José Wallenstein, não poderá assistir descansado a um minuto do ensaio de Frei Luís de Sousa: o encenador mexe-se constantemente, contorce-se, soergue-se, reclina-se e desliza, quase se afundando na cadeira, para logo a seguir se debruçar repentinamente sobre o texto e tomar notas frenéticas. Interrompe o ensaio, adverte, entusiasma-se. Muitas vezes invade a cena, acompanha de perto os movimentos do actor, sugere-lhe gestos, corrige entoações, mede pausas, afasta-se em silêncio para um ponto extremo da sala ¾ "por vezes, basta olhar de outra maneira para ver melhor", sugere Paul Virilio, o filósofo-arquitecto apaixonado pelas velocidades contemporâneas. A um mês da estreia, Wallenstein faz lembrar o adepto fervoroso que ora protesta com a desmarcação precipitada do ponta-de-lança, ora comemora a assistência perfeita e o remate colocado de uma dupla de avançados. Que observa também, com uma atenção sofredora, cigarro atrás de cigarro, a progressão de cada lance, de cada jogada perigosa.
Nesta fase, todo o tempo e esforço do encenador concentram-se na direcção de actores e no projecto de tornar credíveis personagens absolutamente improváveis, cujo drama psicológico e sentimental - inequivocamente anacrónico e quase ininteligível - pouco mais pode suscitar do que o riso. "Que seja possível acreditar nestas personagens, que seja possível acreditar que elas chegam àquele ridículo, é este o desafio. Todos nós, na nossa vida, podemos atravessar situações semelhantes e ser muito ridículos. O que é fascinante é que, sendo inverosímeis, estas personagens sejam verdadeiras." Wallenstein leva-as a sério. Quando no ensaio sugere a José Pinto (Telmo Pais) ser "mais concreto, menos teatral" ou insiste com Margarida Gonçalves (Maria) para tornar mais "física" a cena final, instiga o elenco a construir gente de carne e osso e espera que a cena restitua a profunda humanidade que impregna as personagens. "Não me interessa nada uma encenação formal ao nível do trabalho dos actores. Gostaria de fazer um espectáculo eminentemente realista, que se visse ali uma família com os seus dramas."
A Madalena que Margarida Marinho descobre aos poucos nos ensaios, e com quem vai também aprendendo a conviver, é talvez a expressão mais (in)feliz deste processo: torturada pela incerteza da morte do primeiro marido e pelos sucessivos agoiros e profecias que apontam para um iminente regresso, é uma mulher que vive num profundo estado de depressão, dependendo em absoluto dos comprimidos e conhecendo variações de humor a todo o instante. Aos desarranjos de Madalena juntam-se a saudade doentia e a absurda esperança de Telmo no retorno de seu Senhor, vinte e um anos depois do desastre de Alcácer Quibir, bem como a fascinação delirante de Maria por um passado mítico que mal conhece. E nem sequer Manuel de Sousa Coutinho - a única personagem da peça que tem os olhos no futuro, por ter os pés no presente - é capaz de compensar o desequilíbrio endógeno de que toda a sua família padece: na cena em que tenta distrair Maria de coisas que, como diz Madalena, são "tão fora da sua idade e muitas de seu sexo também", Nuno Melo compõe um pai demasiado inábil e desajeitado para divertir a filha cancerosa. "Apesar do profundo amor que o move, comenta Wallenstein, Manuel de Sousa representa a incapacidade de fazer bem as coisas. Tudo corre mal a estas personagens, elas tomam sempre o caminho errado."
Manifestamente não é a previsibilidade - marca distintiva da acção que reduz a zero o aterrador "mistério" da peça - que incomoda o encenador e que joga em desfavor do crescimento de tensões no interior do espectáculo. "Toda a peça está construída para a catástrofe e desde a primeira linha que ela se anuncia. Essa ideia de um caminho inexorável para um abismo evidente interessa-me imenso. É tudo tão óbvio que só as personagens não vêem! Temem, pressentem, mas nunca agem nem dizem "não!". Nada fazem para alterar o seu destino." Tomadas por uma vertigem - maligna mistura de desejo e medo - ante o perigo e o mal, dirigem-se como sonâmbulos para um beco sem saída onde os piores temores e suspeitas se confirmam. Pisam um solo que, no momento previsto, se abrirá sob os seus passos. Ou então, como na fórmula de Kafka, é o chão sobre o qual se encontram que não é maior do que o bocado que os seus pés cobrem.

O frade e o cientista
Falamos como se as personagens de Frei Luís de Sousa fossem seres privados de vontade própria e liberdade de movimentos - marionetas cujos fios invisíveis são hábil e secretamente manobrados por uma entidade superior, cuja vocação absoluta se manifesta no binómio "vigiar e punir". Frei Jorge é, na encenação proposta, o seu representante. Movendo-se discretamente por entre as diversas personagens, o frade dominicano - um Jorge Mota austero e desapiedado - é uma espécie de deus ex machina, grande manipulador do engenho teatral e personificação do motor trágico da peça. Muito mais do que o mensageiro clássico das tragédias, o clérigo é aqui, simultaneamente, observador e agente: informa, examina, dirige. "Vejo-o, diz Wallenstein, como um cientista que, no seu laboratório, observa ratinhos, doseando drogas e estímulos, registando reacções. É uma personagem da ordem e da racionalidade." O enigmático pequeno gravador de que se faz acompanhar em cena, e que maneja com perícia e rigor, poderia aliás ser um ícone deste espectáculo. A ideia do aparelho acabou por ser abandonada, mas prevalece a forte impressão de que Frei Jorge é o repórter lúcido imune à hipnose que faz daquela casa um asilo de alucinados.
É certo que não vimos a cenografia e os figurinos, mas sabemos que acentuarão a ambiência tecnocientífica que Frei Jorge e os "vigilantes" impõem durante todo o espectáculo. A caixa branca que Francisco Alves prepara ditará ainda o estreitamento progressivo do espaço - inclinado - em que as personagens se movem, impelindo-as para a boca de cena, precipício que literalmente as engolirá vivas.

A criança e o déspota
Quem espera que, neste palco-laboratório, a temível aparição do Romeiro - a personagem cuja fama se fez do laconismo de uma só réplica! - se revista da costumeira relevância psicologista sairá fatalmente desapontado. Ou desnorteado. A escolha para o papel - impensável ou óbvia?, perversa ou inocente? - recaiu sobre Paulo Castro, que subverte o clássico momento do reconhecimento num inesperado anti-clímax e reduz o herói messiânico à risível condição de uma criança. A ironia, que perpassa já no crédito que a encenação reconhece e infunde nas personagens, adquire aqui contornos de método, permitindo tratar um mistério estafado e exangue. Quando o velho e fiel escudeiro se compraz em rever D. João de Portugal, fazendo-lhe cócegas como a um menino de bibe, podemos ler a sarcástica infantilização do sebastianismo e suas metamorfoses contemporâneas (Salazar é um dos visados do espectáculo e discute-se o recurso a um retrato do ditador), mas também a crítica de uma das feições mais persistentes da fisionomia espiritual portuguesa: "Maltratar Dom João - esclarece Wallenstein - equivale a maltratar uma ideia de Portugal demasiado presa à fatalidade, à saudade e ao pressentimento. Enquanto encarnação de um país passadista, reaccionário e salazarento, Dom João aparece aqui como um vampiro que vem sugar a vida aos outros."
Oscilando entre o registo infantil e a vocação despótica (Paulo Castro é, também, um inescapável pequeno führer, caprichoso e intratável), a figura do Romeiro - ao mesmo tempo que opera um curto-circuito numa apreensão realística do espectáculo - radicaliza o elemento político latente em toda a peça. Não há que fazer escolhas entre o drama familiar de Frei Luís de Sousa e a obra política que a tragédia de Garrett também é, porque - como lemos num ensaio de Eduardo Lourenço - "tudo o que Manuel de Sousa, Telmo, Madalena, Maria são (ou não são) está em relação directa com o que a pátria é." O que, neste drama de "gente honesta e temente a Deus" (a definição é do próprio Garrett!), atrai o director do TNSJ é justamente a ausência da impetuosidade tumultuária que marca as grandes tragédias românticas alemãs e a forma como todo o enredo se enraíza no subsolo da portugalidade, exibindo os seus complexos, tiques e vaidades. "Por um lado evoca-se aquela proverbial propensão aventureira dos portugueses, mas por outro também podemos entrever as pequenas coisas que nos definem, o nosso espírito caseirinho."
Entre a glorificação saudosista (e autista) que Telmo promove junto de Maria e o fatalismo anestesiante de Madalena, estas criaturas à deriva atestam a absoluta incapacidade de viver (n)o presente, libertando-se de um "passado que não quer passar". Também aqui, como prevenia William Faulkner, "o passado nunca está morto. Nem sequer é passado". Metáfora de um país adiado ou fictício, sem identidade ou à procura dela, habitam um espaço-tempo que é nosso, autêntica zona de perigo ou terra de Ninguém.


Pedro Sobrado