Concluídas as obras de reabilitação do interior do São João, prosseguimos caminho aos ombros de gigantes. É do alto de Rei Lear, de William Shakespeare, que vislumbramos a curva de um tempo pós-Centenário. Num palco novinho em folha e com um clássico de sempre, amplificado por uma nova tradução de António M. Feijó, Nuno Cardoso dirige em Lear um elenco que combina atores da nossa companhia quase residente com outros que aqui fizeram história. Esta articulação de tempos e memórias aprofunda-se através de um gesto de encenação: a reutilização de equipamentos técnicos e de cena, adereços e figurinos de anteriores produções do São João. Lear encena o conflito geracional e a falta de solidariedade na família, a cegueira nas relações de amor e de poder. Stanley Cavell, em O Repúdio do Conhecimento, livro que lançámos na coleção Empilhadora, refere “a confusão da política com o amor” como o centro da peça. Ao trocar poder puro por amor ambíguo, Lear abre caminho à tragédia, que assume aqui uma forma furiosamente política. Consequências? “A política torna-se privada e por isso desaparece, deixando o poder ao serviço do ódio.” Tudo começa por uma palavra, um “nada” que tudo questiona.

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