Não é a resposta que nos ilumina, mas sim a pergunta.
Eugène Ionesco
Ao ser confrontado com um convite, alargado a muitos, para escrever sobre um espetáculo da programação do Teatro Nacional São João, hesitei. No entanto, decidi ser afoito e aceitar o desafio. Seguiu-se a escolha do espetáculo. Muitos, excelentes, já estavam tomados. Lembrei-me de um que, na altura, me impressionou de forma indelével – Rhinocéros, de Ionesco. Contudo, que poderia dizer acerca do visionamento de uma encenação que aconteceu há tanto tempo (decorreram 13 anos)? A memória não me atraiçoaria? E o que é isso, memória…?
Lembrei-me, em primeiro lugar, de recorrer à caixa de sapatos onde guardo os bilhetes dos espetáculos a que assisti desde meados dos anos 90. Encontrei. Ali estava o ingresso que provava que tinha estado presente na encenação de Emmanuel Demarcy-Mota.
Curiosamente, estava plenamente convencido de que tinha assistido a este espetáculo no Teatro Nacional. Errado. Percebi que o evento, apesar de dinamizado pelo TNSJ, tinha acontecido noutro local.
Esforcei-me por recordar imagens, movimentos, sons, cheiros, palavras…
Confesso que pouco ficou.
A nossa memória atraiçoa-nos constantemente e, quando somos apanhados desprevenidos, percebemos o quão débil esta pode ser.
O que posso recordar, de forma difusa, são sons distantes, mas poderosos, que ecoam até hoje. Deste espetáculo, claramente, permaneceu aquilo que considero amar mais. A música. Neste caso, o ruído estranho, incomodativo, pesado, muito significativo, dos rinocerontes em que os seres humanos, muitas vezes ao longo da nossa História, se transformaram. A besta que substitui o humano. A falta de caridade, de empatia, de solidariedade, presentes tantas vezes ao nosso redor. Este aspeto do teatro do absurdo de Ionesco foi magistralmente traduzido pelo encenador. O movimento em cena e, uma vez mais, a “música” da pequena sinfonia de sons da coreografia a acontecer num escritório/andaime – com as máquinas de escrever, os livros e os papéis que os atores manuseavam – e que transmitia, genialmente, a ideia do dramaturgo.
O espetáculo teve o condão de prender à cadeira o auditório como se este tivesse receio de respirar e perturbar aquilo que decorria em cena, alterando o equilíbrio/desequilíbrio dos acontecimentos que se sucediam em palco.
Quando tudo terminou, e o solilóquio de Bérenger deu lugar ao silêncio, as palmas soaram entusiásticas e a sua reverbação, admito, permanece na minha memória.
É um momento muito especial, que aprecio particularmente: o silêncio que antecede as palmas. Seja porque a magia ainda está a envolver-nos, seja porque a perplexidade dá lugar ao desalento. Em qualquer dos casos, transporta uma sensação deveras única.
A caixa preta, uma vez mais, através daquilo a que chamamos teatro – as palavras, os corpos e as vozes dos atores, juntamente com os sons e a luz –, traz-nos de volta o théatron: o lugar de onde se vê. E, novamente, a oportunidade de nos confrontarmos connosco próprios. Hoje. Há 13 anos. Amanhã. Sempre que a magia acontece e nos esquecemos de que aqueles que estão diante de nós não são uma “trupe de saltimbancos” mas sim algo maior e mais poderoso que nos provoca “a sensação”: de nos vermos ao espelho ou de sairmos de dentro de nós para, misteriosamente, nos observarmos de fora.
*Espectador.
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7+8 Julho 2006
Rivoli Teatro Municipal