A Barca da Glória é um texto algo escondido no repertório vicentino. Por ter sido escrito em castelhano e por fazer parte de uma série em que figuram outras duas peças: Inferno (1517?) e Purgatório (1518). Dir-se-ia que o conhecimento destes dois outros autos escritos em português quase dispensa o conhecimento de Glória, a peça, que, na Páscoa de 1519, põe fim ao ciclo das Barcas.
Porém, não adianta escondê-lo, este descaso deve-se ainda a outro motivo: para muitos, o auto termina de forma decepcionante. Depois de nas Barcas anteriores se terem julgado sobretudo as classes baixas e médias, tinha chegado a vez de julgar os grandes do mundo. Os pecados são graves e lembrados com clareza. Mas existe uma diferença importante: ao contrário do que tinha antes sucedido, as personagens arrependem-se dos erros cometidos e imploram por misericórdia. A lógica doutrinal, porém, era clara: nada podia fazer-se depois da morte para evitar a perdição dos pecadores: nem orações tardias nem trocas venais.
Fundado nesta mesma lógica, o encenador italiano Giorgio Barberio Corsetti, que pela primeira vez chegava a Gil Vicente, não aceitava a didascália que indica o gesto redentor do Cristo pascal. Como compreender que a Alcoviteira ou o Sapateiro da Barca do Inferno tivessem sido condenados por “tão pouco” quando os poderosos se tinham salvado?
Logo na primeira conversa, o encenador quis saber a minha opinião. Não teria havido intervenção de alguma censura? Talvez a remissão dos poderosos fosse o preço a pagar por Gil Vicente ou pelos seus editores para que o texto tivesse sido representado e publicado.
Invoquei o enquadramento doutrinal: à luz da escatologia da época, tal como o Merecimento, também a Misericórdia constituía uma via de resgate. Aduzi ainda um argumento que me parecia essencial: o resgate acontecia em dia de Páscoa e vinha directamente do Ressuscitado, que distribui remos pelos pecadores arrependidos.
Debalde. Não houve maneira de fazer prova da coerência de Gil Vicente. Afinal, a teologia de Quinhentos não podia competir com os imperativos de justiça próprios do nosso tempo.
No dia da estreia, a minha curiosidade era enorme: como iria o encenador resolver o problema do final da Barca da Glória?
A parte do espectáculo que dizia respeito aos dois primeiros autos decorreu em absoluta fidelidade ao texto. O mesmo parecia suceder com a Barca da Glória, que é, de resto, o auto mais teatral de toda a série. As personagens entravam em cena pela mão da Morte, indiciando uma diferença essencial. Essa parceria, que revelava a forte presença das danças macabras, significava que cada uma das figuras vinha já acompanhada da consciência do Além. Era essa mesma consciência que depois facilitava a assunção dos pecados e o arrependimento.
A última personagem a comparecer no palco foi o Papa e a condenação era clara. À semelhança do que sucedera com todos os outros, nada ficou por dizer, em respeito escrupuloso pela Letra e pelo Espírito do texto.
Mas, quando me preparava para ver a solução cenográfica que Corsetti preparara para a indicação final, eis que o pano desceu. Assim se rasurava, na prática, o conteúdo da embaraçosa didascália.
Já nos bastidores, onde foi servido o beberete que assinalava a estreia, perguntei ao encenador quais os motivos que o tinham levado a excluir a solução querida por Gil Vicente. Como quem esperava a pergunta e como quem preparara a resposta, disse-me então o fino e inventivo encenador das Barcas:
“Não sei se foi uma solução querida. De qualquer modo, não excluí nada. O pano desceu um bocadinho antes do que o texto manda. Mas cada um é livre de adivinhar o que continuou a acontecer no palco!”
*Professor da Universidade de Coimbra.
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28 Janeiro – 20 Fevereiro 2000
Teatro Nacional São João