Já não me recordo do ano em que estávamos, do dia da semana ou do mês.
Sei que estava sentada na plateia do Teatro Nacional São João, sala que me era familiar. Sei que não estávamos ali para assistir a um Shakespeare convencional, um teatro de teatro. Este Otelo é-me bastante particular, isto porque o que ficou de mais presente foi a transparência e a força com que o trabalho do Nuno M Cardoso se reflectiu na paisagem e nos actores. O espaço frio, uma luz branca que de algum modo cortava aquilo que de redondo e terreno era dado pela madeira, pelas estacas e pela cena de paletes de madeira que construíam a arquitectura dentro de palco.
Mais do que tudo, ficou gravado na minha memória um contorno bem afiado da palavra falada, o lado humano que transpirava em cada uma das personagens. Uma presença que contrastava com um ar e um tempo que pareciam parados, densos, quase como um nevoeiro. O Ângelo e o Nuno Cardoso, Otelo e Iago, quase à boca de cena, e a força seca daquele diálogo ficou mais registado do que as palavras que eles diziam. Foi talvez aqui que vi pela primeira vez a Sara Barbosa em cena. É incrível esta capacidade que o Nuno M tem de sacar do fundo de cada actor, como que com uma colher côncava, a cor mais forte da voz que pode dar lugar ao texto.
O bloco de gelo que continuamente derretia em cena, um lugar que, mais do que uma composição de movimentações, era uma composição de humanidade, de hemisférios reais, de pessoas reais.
Presenças recortadas, figurinos de uma secura e austeridade voluptuosas, e poderíamos estar em qualquer lugar e não estar, porque o tempo que media a memória de cena era um lugar congelado numa cronologia sem data. Este Otelo agarrou-me como um gancho, da primeira à última linha, pois o modo como estava construída a dramaturgia rasgava continuamente um traço de névoa que acompanhava toda a temporalidade do trabalho. O Ângelo e o Nuno Cardoso, Otelo e Iago, quase à boca de cena.
*Mediadora cultural.
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11-21 Janeiro 2007
Teatro Nacional São João