O primeiro dia

INÊS NADAIS*

Meio ano antes de me ter tornado espectadora de teatro, Roberto Quaglia, um peculiar autor italiano de ficção científica que inesperadamente se atravessou no caminho deste texto e mais inesperadamente ainda se transformou de uma linha para a outra na minha alma gémea, assistiu, desprevenido, “a uma representação de As Três Irmãs, de Tchékhov, na versão do encenador lituano Eimuntas Nekrosius”. Digeriu a experiência semanas depois na coluna Pensiero Stocastico, que então mantinha na revista Delos – um artigo em que teria defendido que “o teatro não só não tem nenhum futuro, como nem sequer tem um presente”, caso Eimuntas Nekrosius não se tivesse inesperadamente atravessado no seu caminho.

As quatro horas que, desprevenido, passou nessa noite com aquela prodigiosa encenação de Eimuntas Nekrosius, e as outras quatro que, já prevenido, voltou a passar com ela três dias depois, induziram-lhe um transe de mais de 25 mil caracteres que, como diligente alma gémea, até me ficaria bem reproduzir integralmente. Por falta de espaço – e também por um certo escrúpulo autoral, constrangimento que, dadas as excepcionais circunstâncias cósmicas do meu encontro com Roberto Quaglia, admito ser um pouco menos impositivo –, apropriar-me-ei apenas da passagem em que mais nitidamente me vi ao espelho: “Não sou particularmente dado às liturgias, mas compreendi que teria podido assistir e voltar a assistir àquele espectáculo todos os dias, por muito tempo – por toda uma fase da minha vida.”

Ao contrário de Roberto Quaglia, só mergulhei uma vez no “nirvana” que para ele imediatamente passaram a constituir aquelas quatro horas (sabe-se lá com que futilidade me terei ocupado no dia seguinte, um sábado, enquanto decorria a segunda e última récita de As Três Irmãs no Porto; mas convencionemos que o espectáculo estava esgotado, o que provavelmente até é exacto). E, ao contrário de Roberto Quaglia, quando me sentei no meu péssimo lugar de segundo balcão (onde tardiamente, como a minha alma gémea, me apercebi de que se seguiriam quatro horas de “um drama que não conhecia nem percebia numa língua incompreensível”, o lituano), não tinha grandes ideias sobre o passado, o presente e o futuro do teatro. Na verdade, não tinha qualquer ideia, por pequena que fosse, sobre teatro – apenas a simplória obrigação de entregar um trabalho de grupo ao professor da cadeira de Laboratório de Jornalismo, e uma amiga genial que achou que o PoNTI, o novo festival da cidade, dava um bom assunto.

Quatro horas depois, não só tínhamos de facto um bom assunto (dois ou três minutos da peça gravados à socapa, dois ou três depoimentos de espectadores em êxtase, dois ou três apartes exclusivos de uma das actrizes) como sabíamos pronunciar impecavelmente o nome da Olga de Eimuntas Nekrosius: Dalia Micheleviciute. E eu tinha-me tornado, com 21 anos de atraso, e por mero acaso, espectadora de teatro.

Epifânico, esse primeiro de cinco encontros com a totémica cabeça rapada de Eimuntas Nekrosius foi da ordem da conversão. Cabeça e entranhas revolvidas por uma metáfora avassaladora, um enorme tampo de mesa a rodar, fatal como o destino, em cima do palco, esmagando o desejo de três raparigas vindas do início do século, Olga, Macha (Aldona Bendoriūtė, por quem me apaixonei à primeira vista) e Irina (Viktorija Kuodytė) – e dando de uma assentada um passado, um presente e um futuro à minha até então inexistente história com o teatro. Nela vieram depois a caber as delicadas árvores às costas de Macbeth; a inesquecível banda sonora da cena final de Otelo; o primeiro beijo de Estações, fulgurante construção burlesca que vi a ganhar forma e espessura nos ensaios; e, finalmente, os sombrios berços de Idiotas, que no Verão passado revi, com a devoção de um miraculado, numa exposição póstuma em Nápoles, onde Eimuntas Nekrosius, entretanto fulminado por um ataque cardíaco, não chegou a estrear o seu Édipo em Colono.

Fui desde o primeiro dia, 12 de Dezembro de 1997, uma espectadora de teatro terrivelmente mimada.

*Jornalista

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12+13 Dezembro 1997
Teatro Nacional São João

AS TRÊS IRMÃS

de Anton Tchékhov
encenação Eimuntas Nekrosius
produção LIFE-Festival Internacional de Teatro da Lituânia
Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna