Die Blendung

FRANCISCO MORÃO DIAS*

Sempre me interroguei sobre a razão de todas, ou quase todas, as traduções de Die Blendung, o primeiro romance de Canetti, terem o título Auto-da-Fé. Soube, há dias, por uma nota de rodapé, que tal se deve a uma escolha do próprio autor, quando da primeira tradução para língua inglesa, em 1945. Decerto que a esta decisão não foram estranhas as suas raízes sefarditas, assim como o ladino falado no círculo familiar.

Mas vamos ao que interessa: a Eraritjaritjaka, espectáculo deslumbrante inspirado em textos deste autor búlgaro, austríaco ou inglês, conforme queiramos.

Devo confessar que já pouco me recordo da peça. Lembro-me de imagens movediças, das cores verde e amarela muito intensas e constantes, de um actor enorme e fabuloso que se desconjuntava no palco, de alguma música e de muito texto de Canetti. Lembro-me da movimentação constante e desorientada, da debandada do intérprete ao fugir de táxi para a Ribeira, perante a perplexidade do público. Recordo, com deleite, como reconheci o início de Auto-da-Fé, quando Kien interpela o miúdo a caminho de casa. Também me deliciei ao evitar o “reles truque” de um vídeo que pretendia fazer passar por um apartamento na rua de São João aquilo que mais não era do que um estafado escritório algures na Alemanha, com a opera omnia de Nietzsche, em lombadas amarelas, escarrapachada na estante! Um embuste, portanto… Mas tudo se desculpou em favor daquela loucura que acelerava o caos. Será que foram assim quer a intensidade da vida do escritor, quer as suas mudanças e andanças em busca de uma cosiness que lhe era tão grata para a criação, e que a Inglaterra lhe soube oferecer?

Houve, contudo, uma coisa que me desagradou na peça: o surgimento no final (terá sido no final?) de uma pequena casa com as janelas iluminadas, na noite. Uma descuidada citação de um quadro de Magritte. Pareceu-me um recurso fácil, evidente, kitsch, até. Ora, Heiner Goebbels, pensei eu, não é homem para se deixar enredar em ademanes catitas. Então porquê esta casa? Será que era um convite ao almejado regresso ao lar, ao merecido Heimkehr, à sujeição das suas raízes peregrinas? Ou será que essa imagem barata e singela serviu apenas para nos afagar, ou mesmo afogar, a nós como a ele, no acolhimento dos lugares-comuns? Talvez sim, e porque não?

Só mais “uma nota final para acabar”, como dizem os comentadores políticos: o Teatro Nacional São João, quando visto da esquina da Rua de Entreparedes com a Praça da Batalha é, só por si, uma Blendung. O tamanho, o jeito de paralelepípedo e uma ingenuidade pueril ausente dos Grandes Teatros Nacionais por este Mundo fora, sempre me sugeriram uma bonbonnière ou, quiçá, uma Wunderkammer. E… ora aí está! É tal qual isso: um Armário das Maravilhas, onde me foi dado assistir a uma delas na noite de 2 de Dezembro de 2006. Um assombro que me assolou como um cometa.

Enfim, cá estamos, querido, bondoso e velhinho TNSJ. Muitos parabéns pelos teus 100 anos. Obrigado e até sempre.

Beijinhos.

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1 Vocábulo alemão que significa ofuscação, deslumbramento.

*Ex-olivicultor. Portador do Cartão Amigo TNSJ n.º 876.

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2+3 Dezembro 2006
Teatro Nacional São João

ERARITJARITJAKA

a partir de Elias Canetti
encenação Heiner Goebbels
coprodução Théâtre Vidy-Lausanne E. T. E., Schauspielfrankfurt, Spielzeiteuropa | Berliner Festspiele, Pour-cent culturel Migros, T&M – Odéon-Théâtre de l’Europe, Wiener Festwochen

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna