Nessa noite de há 100 anos

JACINTO LUCAS PIRES*

Não me lembro exatamente, e nunca me esqueci. Parece que passaram – como diz Voinítski (assobiando) – “100 anos”. E, ainda assim, não me esqueci. Sei que havia um jardim, que era uma sala, que era um escritório. Um espaço definido e sem margens? Lembro-me de uma ideia de bosque, de uma luz espessa e antiga, e parece que me lembro de um cheiro a caruma, mas claro que isso é impossível. Sei quem eram os atores, e sei que foram todos ótimos, mas o que me ficou foi a força do grupo. Um bando de intérpretes a fazer um texto tão rigoroso, tão delicado, tão difícil, com a leveza e a graça de quem ia descobrindo – nesse preciso momento, para os nossos espantadíssimos olhos – o prazer do faz-de-conta.

Nessa noite de há 100 anos, no Carlos Alberto, descobri de novo por que razão gosto tanto de teatro. No escuro da assistência, não tinha palavras mas lembro-me de ter pensado qualquer coisa como: é isto!, é isto que eu sempre sinto a ler Tchékhov e que nunca tinha conseguido ver em cena! Aquela proximidade inexplicável por gente com nomes esquisitos na Rússia de outro tempo; aquele misto de “comédia e piedade” de que fala Natalia Ginzburg sobre a escrita do dramaturgo-contista; aquele não-saber infantil e desesperado que existe debaixo das nossas mil máscaras.

O Tio Vânia é uma peça sobre a fragilidade, a grandiosidade, da vida – isso de que nunca se fala –, e a tradução de António Pescada muda-a para português com a inteligência e o cuidado de quem sabe que as frases em cena têm de estar sempre frescas.

O Tio Vânia é uma peça que não é verdadeiramente “sobre” nada, é o que é, o movimento de pôr aquelas vidas a nu – para que possamos confundi-las com as nossas –, e a encenação de Nuno Carinhas tinha o génio de as deixar abertas e misteriosas, de as deixar subir e cair à nossa frente, sem tralha e sem palha; o génio tchekhoviano, dir-se-ia, de entrar e sair de cada “ideia” ou “andamento” bruscamente, mas também com o distraído desapego de um assobiador que, olha, achou outra melodia. Não me lembro, não me lembro – e que saudades.

*Escritor.
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10 Novembro – 4 Dezembro 2005
Teatro Carlos Alberto

O TIO VÂNIA

de Anton Tchékhov
encenação Nuno Carinhas
coprodução ASSéDIO – Associação de Ideias Obscuras, Ensemble – Sociedade de Actores, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna