Naquela noite de Outono aconteceu

Margarida Fernandes*

Recordar Oblomov passados 15 anos. Assim, de peito aberto, sem ir espreitar o programa do PoNTI/XIII Festival da União dos Teatros da Europa, onde se inseriu este espectáculo, sem ir ao Centro de Documentação do Teatro Nacional São João refrescar a memória com o registo vídeo, sem ir a sítio nenhum, a não ser à experiência vivida no grande auditório do Rivoli. A presente memória é, ela própria, paradoxal: os olhos que viram obrigam-se a fechar para o mergulho memorial onde ecoa Oblomov. Deslizando pela corrente temporal, deparo-me com destroços: cenas de outros tantos espectáculos, páginas de leituras, frases de amigos, pedaços de filmes, paisagens irrecuperáveis da cidade, silêncios partilhados. Sobre estes mesmos destroços viajam os meus olhos até àquela noite de Outono.

Uma banheira antiga colocada ao centro do palco; mais ao fundo, um catre humilde ainda desocupado. Dentro de breves momentos, surge uma mão saída da banheira. A mão gesticula ao ritmo da voz enfastiada do seu dono, que preguiça escondido do nosso olhar. A seu tempo, um antebraço revela-se coberto pela manga desmaiada, fechada no punho, como um balão pálido sem ar. Assim se mantém o protagonista, refastelado no seu leito, deixando a nossa imaginação ser guiada pelos ritmos, pausas, direcções daquela mão procrastinadora. Entra o servo, anuncia o avançado da hora, ele traz consigo o ritmo quotidiano e os respectivos deveres, como a recepção de visitas prestes a chegar ou o pagamento da renda em atraso. O amo, proprietário da mão e da vida do servo, continua na sua deriva de lamentos entediados e autoritários. Nesta relação de estatutos encerram-se décadas de infância, juventude, maioridade, o servo é cuidador do seu senhor. A sua coexistência é de tal maneira antiga que não sabem existir individualmente.

Assistimos à bizarria do protagonista deitado no leito (a dado momento, o nosso espírito enfeitiçado transforma a banheira em cama!), retardando ostensivamente o retomar da vida, inventando pretextos para se manter tal como está: escondido do nosso olhar. De Oblomov vamos conhecendo a voz chorosa que alcança os nossos ouvidos em forma de palavras com uma estranha e familiar musicalidade. Oblomov fala romeno. E nós, acompanhando pequenos átomos da sua língua distante, vamos também identificando o seu dilema burguês. Tantas vezes tardamos decisões, adiando dias ou desejando a sua passagem de rajada, tantas vezes esquecemos que perder um dia é desperdiçar uma oportunidade da vida, que nos é impossível condenar Oblomov pelo crime de procrastinação. Quando finalmente decide levantar-se do seu leito/banheira, vemos um homem gigante, em camisa de noite, de barba ruiva e cabelo despenteado. Ficamos boquiabertos com tal aparição, como se estivéssemos a assistir a algo inconveniente. Oblomov tem tudo para ser ridículo, a sua biografia é banal, é mais um burguês em apuros como tantos outros; mas, e apesar destas premissas, ele comove-nos, talvez seja um defeito dos escritores russos tocarem as nossas entranhas como cirurgiões exímios. Talvez seja da aura de absoluta beleza deste espectáculo, homónimo do seu anti-herói. Talvez seja da interpretação prodigiosa dos actores ou da harmonia cénica banhada por uma luz azulada (seria azul?) ou da cenografia operática ou de qualquer outra coisa. Talvez seja da aura emanada pela obra de arte, apenas possível de absorver quando se está fisicamente diante dela. Não é todos os dias que acontece, naquela noite de Outono aconteceu.

*Atriz.

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26+27 Novembro 2004
Rivoli Teatro Municipal

Oblomov

de Mihaela Tonitza Iordache
a partir de Ivan Gontcharov
encenação Alexandru Tocilescu
produção Teatrul Bulandra | Festival PoNTI/XIII Festival da União dos Teatros da Europa

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna