Não pares de escutar

CRISTINA GRANDE*

I need my memories. They are my documents. - Louise Bourgeois

A memória que possuo de The Show Must Go On é hoje descontínua e imprecisa. Mas a possibilidade de reaver o espectáculo para lhe restituir a sua importância na minha história da dança contemporânea, e celebrar a sua apresentação no Teatro Nacional São João, determinou a escolha.

Lembro-me de que tinha uma grande expectativa de assistir a esta peça. A autoria do coreógrafo Jérôme Bel, a ressonância crítica e a sua integração no festival PoNTI – um evento de referência internacional na cidade, pelos teatros do mundo que nos dava a descobrir – foram motivações essenciais.

The Show Must Go On foi buscar o título à canção dos Queen. O palco do Teatro Nacional São João estava vazio de adereços e na obscuridade. 19 canções pop tinham sido alinhadas para ser escutadas na íntegra, colocadas por um DJ com um leitor de CD e uma consola de luz. 20 performers amadores e 20 bailarinos profissionais aguardavam a entrada no palco. “Tonight” (West Side Story), de Jim Bryant e Marni Nixon, e “Let the Sunshine In” (Hair), de Galt MacDermot, surgiram como epílogo. “Come Together”, dos Beatles, marcou a entrada dos performers no palco.

80 minutos de uma experiência desarmante e absolutamente inesperada. Estávamos perante uma representação teatral que se misturava com a singularidade da nossa vida. Onde estava o espectáculo? E o que fazíamos ali como espectadores?

Aparentemente simples mas fenomenologicamente complexo, The Show Must Go On apresentou-nos uma lista de canções de culto que se foram sucedendo em palco para nos interpelar através da sua associação às nossas memórias, como ecos de experiências e de lugares que já não habitávamos mas que ainda existiam em nós.Fomos “observadores-ouvintes” de imagens construídas, dançadas e accionadas ao longo de um tempo tranquilo, marcado pela temporalidade que cada canção impunha e inspirava.

Esta sequência-partitura de canções pop remetia-nos para recordações pessoais, vividas individualmente, originando a sensação de que a peça sucedia sobretudo “nas nossas cabeças”.

Inerente a cada uma das canções residia uma ironia oculta, materializada na exploração de imagens-cliché que nos reenviavam para um sentimento melancólico mas também divertido, onde admitíamos, fascinados, que “aquilo era sobre nós”.

Nesta discursividade, resgatava-se uma experiência privada mas também um sentimento comunal, reconhecível na cumplicidade e na emoção que invadiu a sala. Recordo-me de observar a plateia esgotada e reactiva à medida que as canções e os gestos performativos, impermanentes e inusitados, se iam acumulando. Lembro-me de que a canção “Imagine”, de John Lennon, escutada em completa escuridão, provocou o acender de vários isqueiros entre o público, numa resposta literal à melodia da canção mas também em referência ao simbolismo da letra, lembrado colectivamente. O que sentíamos afinal?

The Show Must Go On é um espectáculo armadilhado, interpelativo, habilmente manipulado de forma a colocar-nos em cena, numa espécie de “acerto de contas” dependente da nossa memoração.

A escrita dramatúrgica tem como fundamentos operativos a relação entre a arte e a vida, materializada na diluição da autoria da peça, no esvaziamento de adereços técnicos, no uso de materiais relacionados com o nosso quotidiano e na implicação de performers com corpos triviais e autênticos, aqui reunidos em jeito de celebração de um qualquer concerto pop.

Estes princípios tomam como referência as experiências da geração seminal da Judson Dance Theater, de 1960 e 70, sedeada em Nova Iorque, e que até hoje sedimentam a obra artística de Jérôme Bel.

Nesta peça, Bel ensaia a produção de uma experiência intimista mas também reflexiva, investida em interrogar a concepção deste objecto artístico, sua função, lógica e mediação junto de nós, espectadores.

Uma prática radical que me obrigou a reformular a experiência de ser espectadora, pelo confronto com os mecanismos usados e pelas linguagens artísticas convocadas.

Olha para trás no tempo para o releres e reconstruires infinitamente. Não pares de escutar. The show must go on.

*Programadora de dança e performance.

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12-14 Dezembro 2001
Teatro Nacional São João

The SHOW MUST GO ONhe Show

conceção e encenação Jérôme Bel
coprodução Théâtre de la Ville, Gasthuis, Centre Chorégraphique National Montpellier Languedoc-Roussillon, Arteleku Gipuzkoako Foru Aldundia, R.B.
Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias
Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna