As estações são lugares esquisitos. Não é apenas por provocarem aquela sensação de transitoriedade e impermanência, de um estar sendo em continuidade. Também não é só por serem não-lugares, espaços de desencontro, de espera e de desindividuação. A ter de precisar, diria que a estranheza das estações advém de serem portais: concretizam aquela coisa de se estar num sítio e ser transportado para outro lugar. Isso é que é perturbador. Não sentir o trajecto, ser-se atravessado pela viagem e de algum modo chegar a outro lugar, sem nossa intervenção. Somos apenas levados. Abducted. Subtraídos de um lado e adicionados do outro. Não estamos no comando, nem temos agência. Mas a passagem é a nós que nos acontece.
Bastante como no teatro.
Imaginemos que isto se passa no Porto. Estamos ali e depois já não estamos. Também não estamos em Elsinore nem aquela floresta de microfones está a fingir que nos engana. Não; sabemos bem como se dá este mecanismo de trasladação e distinguimos nitidamente entre ficção e realidade. Também fantasiamos desconhecer o enredo e as falas e a fatalidade, pelo gozo de sentir as variações autorais na apropriação do cânone. Mas a coisa acontece-nos e, de repente, apercebemo-nos de que nada retém os contornos que pensámos conhecer. Em um Hamlet a mais, o convite é para uma ininterrupta deslocação. Daqui para ali, sem sinal sonoro; nem um aviso para estarmos atentos à distância entre as portas e a plataforma.
Nada é como devia ser?
A memória não guarda todos os compostos da experiência, mas o deslocamento está lá: persiste, num canto esconso da lembrança, a sensação de que aquele objecto não pertence inteiramente ali (nem em termos físicos nem no que concerne à esfera do sentido). Preto e rubro são as cores sugestivamente associadas à tragédia, e contudo ali a temos vestida de branco, resplendente, com um toque negro apenas. Também nos habituámos a frequentar o Teatro Nacional São João para comungar das realizações de Ricardo Pais, e todavia ali estamos, no grande auditório do Rivoli, mais branco a reflectir as alvuras da cena, mais cubos a ressoar a quadratura instalada em palco, prolongamento do desenho geométrico que os figurinos interrompem. Espadas e guitarras eléctricas digladiam-se pela nossa atenção, absorvida pelo vídeo, nesta peça teatral virada concerto rock, onde os intérpretes são desencaminhados e Rosencrantz e Guildenstern nem sequer aparecem. Tudo fora do seu devido lugar, portanto.
Ou nem muito assim. Porque tudo encaixa.
Na caixa negra uma representação branca. No palco tridimensional outra caixa, de imagens e cores, formada por quatro telas de projecção (alucinações? fantasmagorias?). Lutas, sobreposição de monólogos e sons dissonantes, movimento, excesso, revoada. Como 10 anos antes fizeram os U2 na digressão Zoo TV, inesperada revisão das regras aprendidas (este não será mais um espectáculo sóbrio e razoável, esses já fizemos – diz a banda e diz Pais). Informação torrencial a verter da cena para uma plateia sobre-estimulada, a apanhar com o drama estilhaçado e a degustar cada momento de um Hamlet reinaugurado, reconfigurado, desconstruído – como se diz de certos pratos da nova cozinha –, mesmo se não reconhecemos os sabores individuais envolvidos em novas texturas e combinações resultantes de uma confecção sofisticada. Achtung baby.
Fim de estação?
Não é um Hamlet servido requentado nem a preço de saldo. Nem sequer é o lado b do Hamlet anterior. É toda uma outra invenção. Porque o encenador já tinha chegado à estação terminal da primeira vez, aqui foi preciso fazer um transbordo – para outro sítio. Esquisito lugar, tamanha relação de forças entre a tradução de Feijó, o design de Lagarto, a música de Rua, as visões-ficções de Iaquone e Américo e as manobras do trio João Reis / António Durães / Luísa Cruz. Uma disputa corpo-a-corpo de que saímos rendidos, magnetizados, sem saber bem como lá fomos parar, mas desejantes de uma nova trip. Valha-nos memory lane.
*Autora.
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24-31 Julho 2003
Rivoli Teatro Municipal