I. O texto
O texto de Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo, está nitidamente dividido em duas partes: a mais importante, em termos de tamanho, apresenta-se sob uma forma dramática, com diálogos, apesar de se constituir supostamente como “história”, o relato dos amores desafortunados do narrador com Liza, que se parecem bastante com os do Raskólnikov de Crime e Castigo, mas sem redenção final, e embora o discurso indirecto ou o discurso indirecto livre fossem mais expectáveis.
A introdução, a primeira parte, é o trecho mais denso e original. E é-o tanto pela forma – os cadernos interpelam o leitor, lançando um diálogo em que faltam as respostas – como pelo fundo – o diagnóstico de “loucura” sugerido pelo narrador é tão mais insatisfatório quanto, por vezes mesmo nas suas contradições, o leitor reconhece forçosamente as próprias iras e desilusões no rol de queixas que, página após página, lhe são expostas. É de maneira idêntica que Canetti armadilha o leitor de Auto-da-Fé, ou seja, fazendo-o partilhar, a pouco e pouco, o delírio paranóico das suas personagens.
Conhecia bem o texto em questão por ter tido, anteriormente, a ocasião de o comparar, em detalhe, com a extraordinária adaptação que dele fez Richard Wright – The Man Who Lived Underground – para descrever a condição dos negros americanos. Devo confessar que desconfiava do que me esperava (adaptar significa demasiado amiúde trair) a primeira vez que fui ver o Nuno Cardoso – até aí só o vira numa surpreendente encenação das Criadas de Genet representadas por dois homens – numa versão cénica do Subterrâneo.
II. O actor
Concentrado e despojado são os termos que me ocorrem imediatamente para descrever esse primeiro espectáculo dirigido por Paulo Castro em 1995. Dificilmente se poderia chamar ao seu trabalho mise en scène, visto que não havia cena nem cenário – imagino que o Nuno devia querer um espectáculo transportável para toda a parte – nem deslocações, tão-somente gestos – pelo que as designações mise en corps e mise en bouche me parecem traduzir melhor a natureza do espectáculo em causa. O que sobressaía com mais pujança era o texto, com todo o mal-estar e desconforto que aquele discurso simultaneamente pusilânime e raivoso veiculava. Senti-me logo fascinado. E conquistado. No decorrer da nossa colaboração no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira – Porto 2001, Capital Europeia da Cultura –, vim a saber que o Nuno Cardoso representara aquele monólogo em muitas prisões do país. No final do ano 2000, intrigados com algumas ausências suas durante uma fase do processo de trabalho, tivemos a surpresa de ver anunciado um outro monólogo, Projecto X.2 – A Mordaça, por ele interpretado e encenado por Francisco Alves. Mais austero ainda, mergulhado numa quase escuridão, com movimentos au ralenti que lembravam butô, o actor apresentava-se-nos nu e fantasmático. Curiosamente, a exposição do corpo, na sua vulnerabilidade, roubava ao texto – de Schmitt e outros – uma fatia da sua força. A audácia era de ordem estética e o espectáculo, mais inesperado, era menos incómodo do que o minimalista Subterrâneo. Não deixei contudo de apreciar o risco assumido pelo Nuno, que começava então a ver o seu talento reconhecido…
III. O espectáculo
A segunda encenação do Subterrâneo, em 2016, no “salão nobre” do Teatro Nacional São João, surpreendeu-me ainda mais. O Nuno, vestido à janota, altivo, próximo no espaço mas distante na postura, acrescentava ao texto a arrogância, substituía a raiva pelo desprezo ostentado, feria o espectador com um sorriso mais frontal e ferozmente do que na sua representação anterior. Além disso, o sorriso de vendedor, fátuo e falso, que reclamava cumplicidade mas impunha afastamento, bastava, sem adereços nem meias cortinas, para criar o distanciamento brechtiano. O texto ganhava uma dimensão em que o maquiavelismo se sobrepunha ao desespero. Pois a despeito dos proclamados insucessos, a personagem exprimia uma segurança tal que o Nuno podia libertar, por interposta máscara, os seus sentimentos de conquistador. O texto jogava portanto com três níveis distintos: a raiva e a frustração originais da personagem de Dostoiévski (o texto não sofrera alterações); a falsa superioridade alardeada pela personagem promotora de si mesma (com o seu didactismo demonstrativo); o verdadeiro triunfo do Nuno, que injectava na personagem uma espécie de sincera jactância. E isso com, subliminarmente, todas as dúvidas e contradições que o infeliz cabotino de Dostoiévski partilha com todos os homens – leitores, actores, directores, espectadores ou transeuntes anónimos. Até este espectáculo, o texto de Dostoiévski era para mim simultaneamente uma referência e uma curiosidade – não escapava à “literatura”. Porém, desde então tornou-se um companheiro, um fantasma íntimo, um duplo…
*Escritor, realizador.
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14-23 Abril 2016
Teatro Nacional São João