Entrar no edifício da Alfândega do Porto para ver um espectáculo encenado por Corsetti é já por si um maravilhoso e promissor indício de que vamos usufruir de um momento único e inquietante. Corsetti é um encenador que assenta a dramaturgia das suas peças na arquitectura do espaço/cena e numa interpretação de grande presença, através da qual os intérpretes nos questionam com intensidade e força, indelevelmente associadas à sua enorme disponibilidade física.
Em Corsetti, a palavra é corpo e o corpo é nervo e entranhas. A dramaturgia é espaço e o espaço dá sentido ao texto. É neste contexto que pensar Il Processo de Kafka no espaço da Alfândega, com a sua enorme escala, a sua monumentalidade e a esmagadora presença de granito, nos faz antever um vertiginoso estremecimento.
Lembro-me de que ao percorrer aqueles enormes corredores, com uma altura que nos apequena, nos fomos deparando com uns grandes televisores, pousados ao longo de uma das paredes laterais, por onde circulavam, rápidas e furtivas, ratazanas negras. Ainda antes de entrar na sala já se respirava e pressentia Il Processo no seu labirinto de obsessões, no seu universo de percepções distorcidas de uma realidade possível.
Não me lembro pormenorizadamente, mas tenho muito presente a ideia de um espectáculo que me fez sentir viva, atirando-me para dentro da acção, onde o medo, o pesadelo e a dúvida alcançavam zonas de um absurdo hilariante. Através de recursos cenográficos que materializavam essas sensações, como a movimentação da bancada que ao longo do espectáculo nos foi reposicionando na cena, criando novos espaços, e fazendo-nos entranhar uma percepção labiríntica da mesma; ou o mecanismo que verticalizava a secretária de Joseph K., desafiando a gravidade, alterando a perspectiva e criando um novo plano de uma forma inteiramente inesperada.
Tenho gratas saudades das encenações de Giorgio Barberio Corsetti. A primeira vez que contactei com o seu trabalho talvez tenha sido nos Encontros ACARTE‘89, tendo Il Processo sido apresentado no PoNTI‘99. Em 2019, resta-me aproveitar este convite para relembrar comovidamente o seu trabalho, que tem uma identidade muito própria e que sem dúvida me marcou e enriqueceu.
*Coreógrafa.
15-18 Dezembro 1999
Alfândega Nova do Porto