Não me recordo do que vi primeiro, se St. Kilda Tales, o espectáculo, se St. Kilda, o bairro de Melbourne, o mesmo que serve de território às personagens e acção da peça.
Vi o espectáculo duas vezes no Teatro Nacional São João, na Praça da Batalha. Era Verão no Porto, cheirava a São João, a cidade andava alegre com o bom tempo e com os sucessos de José Mourinho no Futebol Clube do Porto. A primeira apresentação do espectáculo coincidiu com a final da Taça UEFA. No palco, a música electrónica impunha o ritmo, frenético, de personagens que se cruzam em diálogos rápidos, intimistas, violentos, sussurrados; percebemos com as movimentações e contracenas dos actores que aquela estrutura é uma rua, uma sala, um bar, um salão de festas, uma estrutura de ferro e estrados que condicionam os passos das personagens; destacam uma cena no púlpito com um discurso profético, escondem corpos que se violam numa rua atrás do bar; iluminam depois uma discussão entre dois jovens e as personagens continuam por entre as estruturas à procura do lugar certo, que parecem não conseguir encontrar. Lá fora, a música popular, pimba, quase a misturar-se com a cena, bailaricos em cada esquina, tendas a vender manjericos, bolos e inutilidades várias, bêbados na praça, cânticos de apoio ao jogo e uma tensão no ar, o calor húmido da cidade misturado com a euforia da cerveja.
O espectáculo pareceu-me então uma celebração da cidade: alguém do outro lado do mundo, de um bairro para nós desconhecido, trazia-nos uma homenagem algo dramática àquele momento de euforia colectiva.
Nesse mesmo ano visitei Melbourne e, não completamente por acaso, instalei-me em St. Kilda; e voltei a encontrar na vida real as personagens que conheci em palco, homens e mulheres cruzando-se num ritmo alucinado de conversas e gestos.
Nas ruas de St. Kilda, no meio de pessoas que seguem as suas vidas indiferentes aos detalhes, na confusão de conversas que se ouvem como farrapos nas esquinas ou nas portas dos bares, fui reconhecendo o Paul, a Zoe, o Patrick e a Beth que vi no palco. As personagens eram afinal reais, com vidas e histórias muito semelhantes às das pessoas que habitavam a Praça da Batalha. “Uma praça no Porto e um bairro em Melbourne”, lembro-me de ouvir alguém a gritar de copo no ar, naquela noite que ficou na memória da cidade.
Em St. Kilda, a multidão celebrava com fogo-de-artifício, música e festas em todo o bairro; confundi várias vezes a Olivia, a Lucy e o Tasso com pessoas com quem me cruzei; uma eventual vitória local no Open da Austrália talvez tenha aproximado a rua do palco naquele dia de Verão austral.
St. Kilda representava o fim de Melbourne antes do mar. Chegavam ali imigrantes de todo o hemisfério, comerciantes de rua, aldrabões, traficantes, prostitutas, delinquentes crónicos, turistas perdidos. Algures perto da praia ficava um terreno abandonado, onde durante o dia paravam uns camiões e à noite parava tudo o que era preciso. No terreno, viam-se algumas árvores quase mortas, uma estrutura de metal, andaimes e estrados idênticos ao cenário da peça, uma ruína de obra abandonada há anos. Ao longo da noite, pessoas vindas de todos os lados da cidade transformaram a ruína num palco onde se comemorou o fim da noite; encontraram-se pessoas, trocaram-se beijos e fizeram-se promessas de corpo cansado e cabeça em desalinho.
É esta a memória que tenho de St. Kilda e das suas tales, difusa nos pormenores mas clara na confusão entre a ficção e a realidade. Conheci pessoalmente o elenco deste espectáculo, primeiro no Porto e mais tarde em Melbourne. Entendi nessa altura que as personagens do espectáculo eram muito inspiradas em pessoas de St. Kilda e de outro bairro vizinho. Nesta geografia humana, as semelhanças entre Melbourne e o Porto também são muitas. Talvez por isso, este e outros espectáculos do Ranters Theatre, com uma linguagem crua e personagens em choque com a realidade, tenham marcado quem os viu.
*Produtor de teatro.
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21+22 Maio 2003 Teatro Nacional São João