A pura presença do gesto

JOÃO BARRENTO*

Tudo começou, diz-me a memória, com o século a dealbar. Estávamos em 2000, encontro marcado com José Wallenstein no Solar do Vinho do Porto, não na Invicta, mas em Lisboa, em pleno Bairro Alto. Alto era também o entusiasmo do então director do Teatro Nacional São João em relação a esta peça singular, talvez única, sem um único diálogo, toda feita só de uma infindável didascália. Eu não sabia o que pensar da empresa, e já não era novato nestas andanças translatórias e dramatúrgicas. Tinha atrás de mim as mais diversas experiências, desde os anos 80, com peças e encenadores muito diversos – Carlos Avillez e Hofmannsthal, Jorge Silva Melo e Brecht ou Goethe, Laureano Carreira e Kleist, Ricardo Pais ou Américo Rodrigues e Bernhard, Stephan Stroux e Handke, Luis Miguel Cintra e Grabe, Kleist, Heiner Müller…

O José Wallenstein tinha já ideias muito precisas para a encenação e a movimentação dos actores – no Porto, um total de 33! – a entrar e a sair da grande praça que era o palco. A tradução da imensa didascália tinha de ser clara e rigorosa. Tudo isto seria ainda muito discutido nos ensaios de leitura (neste caso, de pura antevisão de movimentos e ritmos), ainda só à volta de uma mesa, para mim desde sempre momento único, e por vezes decisivo, que sempre achei dos mais fascinantes de todo o processo de preparação de um espectáculo.

Depois, veio a peça, no São João, em 2001. Estranha e mágica experiência de peça sem palavras, só espaço, corpos, movimento, tensão e expectativa. O palco ganha uma dimensão-outra, de dinamismo ou estaticismo, dependendo dos momentos da acção – que havia, e era sensível, apesar da ausência de diálogos. E a minha pergunta, antes de ver a peça, era precisamente essa: como fazer passar ideias, emoções, um acontecer, sem uma única fala?

O palco era uma enorme praça, espaço aberto, adereços mínimos, tensão e tédio a alternar, dados apenas pelos ritmos descompassados, por vezes inesperados, súbitos, da movimentação das figuras de uma peça apenas “coreografada”, sem mais que “instruções de uso” para os corpos dos actores – experiência rara na história do teatro, uma história com que eu convivia já desde algumas décadas. E que provocou em mim um certo regresso às origens, ou pelo menos a parte delas: aos anos 60 em que me ocupara, pela primeira vez em Portugal, do teatro de Harold Pinter, tendo escrito uma tese com o título Entre a Palavra e o Gesto. Agora, via-me confrontado com a pura presença do gesto (já tão significativo em Pinter e no teatro do absurdo), olhando para um palco vazio de palavras, que me obrigava a uma retradução dos gestos e do espaço em possíveis núcleos de sentido. E terei pensado: Handke no seu melhor, como o daquele Insulto ao Público (no extremo oposto da imprecação com palavras!), que tinha visto décadas antes no Monumental, em Lisboa, na encenação do João Lourenço e do seu Grupo 4. Havia nestas experiências do autor austríaco alguma herança do teatro do absurdo, que tanto me interessara desde os idos de 60. Parecia-me estar diante de uma espécie de reverso de Beckett, com as suas personagens e situações radicalmente solitárias, Krapp enfiado numa cave, quase sem falar mas ouvindo-se a si próprio em gravação, Godot que se faz esperar eternamente, e sobretudo a sua Winnie de Dias Felizes, sozinha em palco, hirta e enterrada até ao pescoço, mas agora multiplicada por 33 figuras, cada uma em busca de si mesma, todas diferentes e hiperactivas – mais um exemplum deste nosso mundo humano, demasiado humano, agora em clave social mais explícita. Aquela praça era o grande teatro do mundo, o mundo era de novo um palco e o teatro, assim despido de palavras, mas não de drama, um teatro total.

*Ensaísta, tradutor.

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1-25 Fevereiro 2001
Teatro Nacional São João

A Hora em Que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros

de Peter Handke
encenação José Wallenstein
coprodução Teatro Só, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna