Havia nevoeiro. Não era uma máquina de fumo. Era nevoeiro! Pensava, até escrever este texto, que o espectáculo a que faço referência teria acontecido em 2001. Porque em 2001 a Capital Europeia da Cultura foi tão mágica para mim quanto este Ensaio sobre a Cegueira, uma co-produção do colectivo O Bando e do Teatro Nacional São João. O meu mágico cabia todo num só ano… pelos vistos. A abundância de alguns cegos do futebol por ocasião do Europeu caseiro colidiu em 2004 com esta estreia, que marcaria os anos seguintes, ora em exposição ora em documentário (Ensaio sobre o Teatro, de Rui Simões). Lembramo-nos todos dos acontecimentos por datas, e aqui a data estava afinal errada na minha cabeça, porque a magia da peça se tornaria intemporal… Se me perguntassem qual o melhor ano do Porto eu diria, sem hesitar, “2001”, e esta… esta foi para mim a melhor das peças de teatro.
Havia nevoeiro. Não era máquina de fumo, repito. À entrada da sala maior do São João, creio que em Maio, distribuíam-se capas ou oleados… Por causa da humidade. Quem tem medo desse nevoeiro? Veríamos bem O Ensaio sobre a Cegueira, com José Saramago a assistir na plateia no mesmo dia que eu. Sim, o escritor estava lá para ver e ser aplaudido, olhando também ele o buraco literal no meio de nós: o fosso da orquestra ao vivo e o fosso ao fundo, na extremidade de duas escarpas metálicas com uma calha ao meio. Ali, todas as personagens caíram afogadas numa lixeira de abismo… ou quase todas. Esse fosso de podridão pela cegueira, que era real e era metáfora da cegueira mental.
À época, como jornalista, sabia pormenores dos actores, de quem se tinha magoado, de ver o Gonçalo Amorim e a Ana Brandão, por quem eu suspirava, como suspirava pelo João Ricardo. Sabia que tinham andado de olhos vendados num antigo manicómio, em Viseu. Que experimentaram ser mesmo cegos… Que se reconheciam pelas mãos. Mas, como espectador, nesse dia deixei toda a informação na sinopse do folheto, caí com as personagens no fosso ou na fossa, consequência da violência sobre o outro, sendo esse o pior dos males.
Numa cadeira do Nacional, ouvíamos o Requiem da Orquestra do Porto e um coro, e víamos, ao cimo das tais escarpas metálicas, uma jaula que simbolizaria o edifício para onde eram levados todos os cegos potencialmente perigosos para o resto dos sãos. Ainda me pergunto: dali, naquele palco ou no livro, quem era doente e quem era saudável? Sentíamos que eles estavam tão alto que também nós partilhávamos as suas vertigens, verdadeiras e legítimas para muitos deles, sei-o hoje. Era impossível uma plateia fugir. Desciam os actores para algumas falas e para nos assombrar. Sentimos o cheiro do lixo e do banho dos sobreviventes. Cheirava mesmo a merda e a gel de banho. Os corpos estavam no meio de nós. E se caíssemos com eles? O que nos reservaria o teatro? Ter a um metro os actores/personagens a rebolar, cair e morrer foi um dos privilégios de sentir medo. Porque nenhum bilhete para o TNSJ voltaria a ser um conforto apenas. Não é isso o que o teatro pretende? Conseguiu-o. Tudo era desconfortável porque na plateia éramos parte da peça, desse ensaio que foi um ensaio sobre o teatro e claramente uma ode ao voyeurismo de se ser mais do que um espectador. O palco era todo um desassossego da condição humana sob o comando do encenador João Brites. Como no livro, para os sobreviventes tudo seria diferente… A aura de um fantasma de Alcácer-Quibir? Havia mesmo nevoeiro fabricado com vapor, água, eu sei lá. A matéria dos corpos abandonados aos cães e ao caos? Uma cidade cinzenta como as nossas, onde tudo pode mudar para se sobreviver.
Hoje, tudo seria mais fácil com hologramas, aplicações de streaming e mapeamentos. Mas em 2004 ainda era uma ousadia.
Lembrar que tudo começa com um carro que não avança. Depois, a engrenagem canibaliza-se, numa peça em que não deixamos de pactuar com esse erotismo de ver o nu, o acidente, a desgraça ou a mentira sem dizer um “ai” sequer. Quem disse que o teatro é para ver e ficar calado? Uma peça dura, mas ter sobrevivido a ela é ter hoje uma parte da história da revolução do teatro em Portugal. Ainda sonho que caímos no buraco, cegos… No meio do lixo. E porque não é um pesadelo, então? Porque ao sonhar com o que vi sou, com certeza, menos acometido de cegueiras.
*Jornalista. _
6-22 Maio 2004
Teatro Nacional São João