A Cidade dos Que Partem foi o primeiro espetáculo que os Palmilha Dentada levaram ao Teatro Nacional São João. Um texto sobre consecutivas partidas, a saída da aldeia para a cidade e da cidade para a capital, na contínua busca de um futuro. Na aldeia havia três vacas e muito campo; na cidade, o sonho fazia-se insucesso, a banda de garagem não saía da cave e imperava o poder político, que não gostava dos artistas. Apenas a capital acenava com as ruas, avenidas e espaços públicos à arte, à música e ao teatro. Estávamos em 2009. E os Palmilha falavam do Porto, faziam a história do teatro com as estórias do nosso dia a dia.
Enquanto o Ricardo Alves escrevia o texto para esta peça, fora do palco andavam artistas a fazer malas, a desfazerem-se do que tinham para, livremente e com pouco peso, abalarem para Lisboa. Consigo levavam o Porto retratado na Cidade dos Que Partem. Na estátua de D. Pedro, no consolo das tripas e no amargo de um presidente de Câmara que considerava que a gestão da cidade e do país se podia resolver com clipes de papel.
Tinha-me rido com os Palmilha Dentada sobre coisas bem mais pequenas, em salas diminutas, frias e desconfortáveis, em espaços exíguos emprestados por gente de bom coração, em bares suburbanos, e em todos eles havia uma legião de indefetíveis que assentava arraiais.
Um dia, em boa hora, ofereceram-lhes o palco do Teatro São João, coisa de gente que jogava na Primeira Liga. Os rapazes do free jazz teatral estavam convocados para a grande orquestração. Claro, fariam um musical. Chamaram os seus melhores: o Ivo Bastos, a Joana Carvalho, o Rodrigo Santos, o Nuno Preto e outro tanto de gente nova: o Daniel Pinto, a Anabela Nóbrega e a Patrícia Queirós. Com os músicos que conheciam o teatro e conheciam a cidade: o Manuel Cruz, o João Lóio ou o Hélder Gonçalves. Tudo cozinhado na loucura absurdamente sadia da encenação do Ricardo Alves, acompanhado pelo Salgueirinho Maia na criação do texto.
E assim se fez a história de Carlos Anunciação, pastor da aldeia, que troca vacas e o rancho folclórico pela cidade e acaba numa banda de rock de garagem. Tropeça no empresário que lhe promete estrelato e num presidente de Câmara que anuncia à cidade a única máquina de felicidade do mundo. Dois logros. A história, que se queria feliz, acaba na partida. A Rosa, amiga de infância, não deixa de lhe dizer o que o assombra: “Tu és como os outros que partem, diferente é quem fica e luta.”
A história era absurdamente simples e reconhecível, o video mapping inovador, mas usado com contenção, os cenários de papel e madeira traçavam os caminhos do herói, as músicas eram brilhantes exercícios sobre estados da alma local e as palavras eram nossas. Em 1993, o João Paulo Seara Cardoso tinha colocado marionetas a falar do mesmo futuro do Porto em Vai no Batalha; em 2009, os Palmilha Dentada ocuparam o Teatro Nacional para, com atores de carne e osso, atualizar esse espelho.
Foram quase 16 anos sem que nenhuma companhia se atrevesse a escrever um texto de raiz, a colocar músicas originais em palco para falar das múltiplas transformações que a cidade vivia, algumas trágicas, outras esperançosas, e outras que anunciavam o futuro que vivemos até hoje: já lá estão os passeios com malas de rodinhas, os turistas japoneses com a máquina fotográfica, os tapumes que promovem reabilitações e a concessão da cidade em parcelas a empresários que as compram por 90 anos.
Os Palmilha não recorrem a mitos gregos, nem a fábulas históricas, para fazer leituras contemporâneas. Cumprem o lema que é deles: fazem a feijoada com as tripas que lhes deixam, com a pronúncia que é nossa, com os provérbios que são a nossa cultura, as nossas virtudes e fracassos. Eles respondem com ironia, matreirice e música aos infortúnios do destino. Mas nunca deixaram de nos ver.
Como espectadora, A Cidade dos Que Partem deixou-me ainda mais comprometida com o teatro, com o coletivo, e confirmou a necessidade de uma dramaturgia nacional. Mas deixou-me também uma pergunta que me perseguiu nos dias que se seguiram à estreia: ficas para resistir e dizeres ao que vens ou ficas para entrar no circuito da apatia?
A Cidade dos Que Partem foi criada num contexto que não é o de hoje, mas muitas das suas bandeiras continuam dignas de ser empunhadas. Este é o exemplo de um trabalho profundamente comprometido com o seu tempo, resultado de um espírito crítico e da vivência comunitária que define as cidades e os artistas que nelas vivem. E foi a prova viva de que os Palmilha Dentada também sabem ser uma bela orquestra.
*Atriz, produtora cultural. Deputada à Assembleia da República na XIII legislatura.
_
30 Janeiro – 28 Fevereiro 2009
Teatro Carlos Alberto