TT: Carlos Costa?
CC: Sim…?
TT: Aqui Torre do Tombo. Estamos a fechar o arquivo dos últimos 100 anos do Teatro São João e precisamos de lá meter uma experiência sua.
CC: Uma experiência minha?
TT: Sim, temos de tudo um pouco – livros, jornais, filmes, fotografias, cenografias, figurinos – mas faltam-nos as experiências, as sensações… sabe, arquivar o ao vivo foi sempre muito difícil para nós.
CC: Imagino.
TT: Então, podemos contar consigo para completar um olhar sobre estes 100 anos?
CC: Claro que sim. É o mínimo que posso fazer como espectador.
TT: E o que é que vai ser?
CC: Na Solidão dos Campos de Algodão, do Koltès, encenado pelo Chéreau, com ele e o Pascal Greggory, no verão de 1995, na Alfândega.
TT: Ui… assim tão depressa?
CC: Pois, foi como se tivesse esperado sempre o vosso pedido, não é?
TT: Mas não está a consultar nenhum registo, pois não?
CC: Claro que estou, mas está dentro de mim.
TT: O que é que está dentro de si?
CC: Aquele verão em que o espetáculo se cravou, a excitação, a antecipação, nunca tinha visto nada do Koltès, nem lido, se calhar. Mas tinha lido um livro do Cyril Collard, ou ia ler a seguir, não tenho a certeza, as Noites Bravas.
TT: Qual é a relação?
CC: Não sei, se calhar é por causa da noite, as dos campos de algodão, as bravas, as da Alfândega, as daquele verão, não sei, mas está tudo junto e até havia um filme e o cartaz que/
TT: /concentre-se no espetáculo.
CC: Sim, o espetáculo. Na verdade, são dois, fui lá dois dias seguidos, os bilhetes eram mesmo bonitos.
TT: Fale da primeira noite.
CC: Fui jantar com o Nuno, ali à beira, o que é curioso, porque o Nuno agora é diretor do TNSJ e na altura/
TT: /irrelevante. O espetáculo, fale do espetáculo.
CC: Era em francês. Escapava-me muita coisa mas não tinha importância nenhuma. Não paravam de falar. Ou melhor, pararam uma vez, pelo menos, ouvia-se um vidro a quebrar e eles dançavam ao som de uma música dos Massive Attack: Karmacoma.
TT: O que é que recorda melhor?
CC: Há um momento em que o Chéreau recua e recua e recua, sempre a falar, sempre a olhar para o outro e de repente parece que vai mesmo tropeçar num carril – aquilo era numa sala grande com o público em bancadas, em arena – e de repente, é que não dá para acreditar, de repente levanta o calcanhar e passa por cima do carril, primeiro um pé, depois outro, parecia que flutuava, não dava para acreditar, foda-se – desculpe, pode apagar p.f. –, era como se tivesse sensores no corpo todo, eram mesmo bons, era tudo mesmo bom e era como se ali tudo se tornasse possível para eles – eles os dois, ali, e o outro, o que tinha morrido, o Koltès – e essas possibilidades alastravam, percebe, como se queimassem, e também era possível para mim, para o Nuno, para o Visões Úteis, no seu primeiro ano de atividade, para o TNSJ com um novo projeto, sei lá, parecia que todos os possíveis do mundo cabiam ali.
TT: E depois?
CC: Depois vi um documentário do processo criativo que mostrava que o Pascal Greggory nem percebia muito bem o texto quando já estava a ensaiar; e era o Chéreau quem lho explicava. E ainda me comovi mais porque se ainda assim tinha funcionado então/
TT: /irrelevante. Digo depois, no dia seguinte.
CC: Ah, aí estávamos mais calmos, tínhamos bebido menos ao jantar.
TT: Você e o tal Nuno? Isso quer dizer que no primeiro dia tinham bebido demais?
CC: Não, de todo, só um bocadinho. Mas no segundo dia estávamos mais reflexivos, queríamos confirmar que não tinha sido um sonho, que tinha sido mesmo assim. E agora reconhecíamos tudo, como o Corto Maltese, que quando chegava a um sítio parecia sempre que já lá tinha estado ou pelo menos que conhecia alguém desse sítio e por isso o mundo/
TT: /concentre-se. Estamos a tentar registar a segunda sessão.
CC: Desculpe. Então, estava lá imensa gente que eu conhecia ou pelo menos reconhecia – a Né Barros estava mesmo à minha frente, o João Paulo Seara Cardoso também; se calhar devia estar a Isabel Barros, eles iam sempre juntos ao teatro, mas não me estou a lembrar dela – e era a primeira vez que eu via tanta gente de Lisboa num espetáculo do Porto. Era como se tudo fosse possível também para a cidade, que podia ser mais cidade, percebe? Como se não estivéssemos condenados a andar com baldes de cola que se entornavam no carro para colar cartazes que desapareciam ao fim de uma madrugada por baixo dos cartazes do circo, isso do circo era muito traumático, acredite, uma vez eu/
TT: /foco, Carlos Costa!
CC: Era como se afinal eu fosse possível. E estava tudo ali.
TT: Obrigado. O seu espaço acabou.
*Dramaturgo, ator, encenador.
18-21 Junho 1995
Sala dos Arquivos da Alfândega Nova do Porto