Elogio do efémero

MARIA JOÃO REYNAUD*

O que poderá ser a memória de um espetáculo 20 anos depois de se ter assistido à sua representação? Procuro no site do Teatro Nacional São João a data da estreia de Madame, à qual tive o gosto de assistir. E fico perplexa: a peça de Maria Velho da Costa subiu à cena a 23 de março de 2000! Resisto à tentação de ir consultar os arquivos do Centro de Documentação do TNSJ. Ver o vídeo do espetáculo colmataria as lacunas da memória; mas alteraria as regras do jogo que me foi proposto. Ou seja: a autenticidade do meu testemunho. Felizmente, a memória tem como grande aliada a imaginação, cujo poder se manifesta logo que ela falha. Os espetáculos que consideramos inesquecíveis são, em certa medida, imaginados.

Ver teatro é estabelecer um pacto com uma forma de imaginário que se alimenta de expetativa. No caso de Madame, peça de Maria Velho da Costa escrita a partir de Os Maias, de Eça de Queirós, e de Dom Casmurro, de Machado de Assis, publicada em 1999, a expetativa não podia ser maior. Segundo a autora, o texto nasceu do desejo manifestado pelo encenador Ricardo Pais de fazer contracenar uma atriz portuguesa com uma brasileira. Assim surgiu a ideia extraordinária de pôr frente a frente Maria Eduarda e Capitu, as figuras femininas centrais de dois romances carismáticos do realismo português e brasileiro. O que daí resultou foi um texto dramático fascinante, levado à cena no ano seguinte e tendo como intérpretes duas atrizes famosas. Era um desafio que tinha tudo para dar certo.

A peça de Maria Velho da Costa é a expressão de um compromisso entre a imaginação e a inteligência, balançando entre a narrativa e o drama. A versão adaptada ao palco foi o ponto de chegada de um trabalho dramatúrgico realizado com o encenador Ricardo Pais e as atrizes Eunice Muñoz e Eva Wilma. Um trabalho também notável do ponto de vista linguístico. As páginas dos romances de que saltam as protagonistas pouco ou nada nos dizem sobre a sua interioridade. Maria Velho da Costa dá-lhes plena voz e desvela pensamentos íntimos. No espetáculo, Capitu e Maria são duas mulheres maduras, que colhem os benefícios de uma vida luxuosa. Têm a mesma idade das atrizes que as encarnam, que o fazem com um tal à-vontade que o espectador depressa se torna cativo do diálogo cheio de ambiguidades e subentendidos que se trava entre ambas. O jogo de “faz de conta” reforça-se (Cena III) quando as atrizes se desdobram nas figuras das serviçais (Francisca, a escrava aforrada de Capitu; e Eulália, a criada de quarto de Maria), que contam uma à outra, nos seus linguajares respetivos, os segredos bem guardados das patroas. O teatro dentro do teatro…

O ponto culminante (Cena VII), um salto para o “avesso da representação”, é quando as atrizes assumem a sua própria voz para falar das personagens que interpretam e do fingimento que o teatro é. Neste diálogo “de bastidores”, entremeado pelo das personagens, a atriz brasileira fala da difícil distinção entre “arte” e “embuste”, “talento” e “fraude". A realidade brutal do envelhecimento entra de repente na conversa. Mas, como adverte a brasileira, os atores são imortais: “Já tínhamos máscara antes de a pôr e tirar. E vamos deixar mais lastro, lenda viva, La Muñoz, La Wilma.”

A lembrança do encantamento com que assisti à contracena de duas atrizes que marcam o nosso tempo permanece viva. Recordo o garbo com que ambas se mediam em palco, ao darem corpo a personagens que fazem parte do nosso imaginário literário. Recordo a dicção nítida e o timbre inconfundível dessas vozes.

A palavra, no teatro, é semente que frutifica.

*Ensaísta, professora jubilada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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23 Março – 22 Abril 2000
Teatro Nacional São João

Madame

de Maria Velho da Costa
encenação Ricardo Pais
coprodução Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna