Beckett é, por excelência, um autor da linguagem, da sua performatividade e, também, do movimento explicitado na acção. No entanto, este adquire, paradoxalmente, mais visibilidade por via da inacção, ou melhor, da contenção, característica fundamental de grande parte das suas peças e das suas experimentações cinematográficas.
Embora seja um autor que trabalhe a palavra até ao seu âmago, esvazia-a de significado óbvio, não permitindo uma decifração fácil e imediata, como esperaríamos, nesta nossa incessante procura de sentidos.
Por isso, a nossa necessidade de uma explicação racional do mundo não encontra, seguramente, lugar numa primeira leitura de Beckett. Com efeito, a sua escrita, recheada de acções, interrupções e fragmentações, desorganiza qualquer tentativa rápida de compreensão ou de estabelecimento de uma lógica dramatúrgica coerente.
Tive a sorte de ver Ah, os dias felizes em três espaços diferentes: no Centro Cultural de Belém (CCB), no Teatro Nacional São João e no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada.
Beckett dizia que “o espaço também é um corpo” e a apresentação do espectáculo nestes diferentes espaços proporcionava, efectivamente, leituras diferentes de um mesmo objecto.
Confesso que, quando em conversa informal com Nuno Carinhas este me disse que a estreia de Ah, os dias felizes seria no Grande Auditório do CCB, fiquei um pouco perplexo e receoso quanto à adequação da peça a um espaço tão excessivo, que poderia entrar em conflito com a proximidade entre actores e público que o texto parece exigir. No entanto, não pude deixar de reconhecer a ousadia e o risco artístico quanto à mudança de escala que o encenador propunha.
Martin Crimp, um outro autor que o TNSJ tem apresentado, diz-nos na sua versão de O Misantropo (1996) de Molière: “Se tens de escrever uma peça, ajudaria não só teres algo a dizer, mas também um modo de o dizer que nos cative, nos comprometa e desafie.”
Tal enunciado, relativo ao acto de escrita, encontra total correspondência no acto de encenar. E foi precisamente o assumir desse compromisso, proposto pelo desafio que era lançado, que fez o espectáculo perdurar na minha memória.
Mas até agora só falei da forma. Por isso, para acabar, falemos de outra coisa, falemos do “humano”.1
Se já nos referimos – de maneira metafórica – ao espaço como um corpo, é certo que em cena estão dois verdadeiros corpos que o habitam e lhe dão a orgânica que a metáfora sugere: o corpo da Emília Silvestre e o corpo do João Cardoso.
Se falo dos actores enquanto corpos é, precisamente, para evidenciar a superação da escala do humano na sua relação com a escala do espaço que ocupam e que nos parece sempre desmesurada. Contudo, tanto a Emília como o João são actores que reduzem essa escala, uma vez que ocupam os espaços aparentemente não preenchidos com qualidades e capacidades que vão muito para além de alguma “arte do improviso” e que nos obrigam a manter o foco nos seus corpos: no fundo, naquilo que é essencial.
Afinal, Nuno Carinhas, conhecedor dos seus actores, sabia bem o que fazia. Mesmo num palco “gigantesco”, a escala do teatro é sempre a do humano. E é no palco que o Homem tem, ao longo da história, exercido o desafio de questionar a sua própria dimensão… tanto no espaço como no tempo.
1 Samuel Beckett – Le Monde et le pantalon.
*Encenador.
Texto escrito de acordo com a antiga ortografia
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15-29 Novembro 2013
Teatro Nacional São João