O baile lento, o grito, um smoking branco

Constança Carvalho Homem

Cette lumière?
La mousson.
Cette poussière?
Calcutta centrale.
Marguerite Duras

A luz branca, de espectro mais alargado, proporciona, em relação a uma luz mais monocromática alaranjada, uma maior acuidade visual, um menor tempo de resposta e, principalmente, um índice de restituição cromática bem mais elevado. Todos estes aspectos potenciam a sensação de conforto, possibilitam um melhor reconhecimento facial e aumentam a segurança dos cidadãos.

Manual de Iluminação Pública – Revisão, Outubro 2016, EDP Distribuição

Era Dezembro, eu tinha 18 anos. Ainda não sabia quem fossem Marguerite Duras ou Ivo van Hove. Foi o primeiro espectáculo nocturno, de teatro, a que assisti sozinha. E ao entrar na sala principal do Rivoli, soube que nunca tinha estado num lugar assim. Desci pelo corredor central, a sala tingida de uma névoa que logo me pareceu doentia. Suspenso da teia, desnivelado, fatigado, um guindaste portuário. No palco, um piano de cauda, almofadas em volta, parte do público tomando um lugar em cena. Progressivamente, o cheiro a incenso, a dilatada rotação do guindaste, a ida e vinda de súplicas no altifalante, a persistência da névoa entre o enxofre e o laranja. Não recordo a música, nem sei que língua era falada, mas sei que ali as cúpulas da França colonial perscrutavam os seus próprios crimes. Sussurros, insinuações, tudo poderosamente vago, lânguido, textural. Amortecido. Naquela altura, também não conhecia mais que a luz do Porto, a difícil luz pública de tungsténio. Por isso, a sala tinha tanto de familiar como de intranquilo: era a noite exacerbada, que nada restituía. O que melhor distingui, e para sempre: o baile lento, o grito, um smoking branco. Seria possível ver tão pouco e estar tão desperta? Quando voltei à rua, a sensação de estar gritantemente sozinha, de querer andar, gastar uma tensão nervosa. Quis dizer a alguns amigos o que tinha visto, e sei que disse, mas havia uma dimensão incomunicável. Li em Artaud, anos mais tarde, uma passagem que exprime bem o que não pude dizer: “O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um frémito inspirado…”

Recordar este espectáculo fez-me recuar a uma época em que não decompor a ficção de forma tão inevitável era, afinal, uma espécie de felicidade. No que me aparecia uno – sobretudo se visual e olfactivamente induzido – a experiência impunha o seu rigor corpóreo e traduzia-se numa profunda, perpétua simpatia. Isto é outro modo de dizer que também o espectador pode viver acompanhado de algumas personagens que visite. Porque recordo bem a noite de India Song (e por diligentemente ter seguido o rasto ao Vice-Cônsul em tanto do que li depois), como não recordarei o dia em que, nauseada e hipervigilante, saí de casa tomada de Gustave Aschenbach, tinha uns 17 anos? Tadzio e Anna-Maria Guardi são os meus nomes de Veneza; sim, Visconti começara a firmar aos meus olhos o que Van Hove definitivamente concluiu – mais do que a imagem, a carnação do amor, percurso da fome e da melancolia.

Se houve espectáculo a irrigar-me a cabeça, os meus desejos de literatura e, pior, os meus desejos de teatro, foi India Song. Antes de supor qualquer contenda insanável entre ambos, India Song erguia-se como solução. Marguerite Duras repetidas vezes confirmaria: era possível escrever assim porque era possível dizer assim, e vice-versa. Essa noite de visão toldada pôs-me a ouvir a doçura, a sondar aquelas vozes, a reter as suas instruções, o seu desfasamento. O espectáculo, que era sensorialmente intoxicante, expôs-me a uma grande via de codificação na oralidade. E persistir em Duras preparou-me, de facto, para outras lições de beleza blindada, trivializante.

De Ivo van Hove, não voltei a ver um espectáculo a que me rendesse desta forma. De Duras, li, vi, ouvi, coleccionei os híbridos; a cada variante da sua canção que nada quer dizer, aceitei o haver graus de percepção só possíveis em insegurança. Da luz, e só dela, espero uma restituição do mundo o mais possível próxima da referência solar.

*Dramaturgista, tradutora, investigadora teatral.

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17+18 Dezembro 1999 Rivoli Teatro Municipal

India Song

de Marguerite Duras
encenação Ivo van Hove
coprodução Het Zuidelijk Toneel, Holland Festival | Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna