Equilíbrio periclitante

VERA SAN PAYO DE LEMOS*

“E o sol, senhora Sílvia Kessel? E os crisântemos? E os banhos turcos? Será que eles não existem?” – é com estas perguntas que Zacarias Werner, o pequeno editor independente, ousa interromper a sessão de leitura do último romance da escritora Sílvia Kessel para discordar do sentimento trágico da vida que atravessa a sua escrita. Está-se no Hotel Confidence, o lugar de acção de O Bobo e a Sua Mulher esta Noite na Pancomédia (2001), apresentado por Botho Strauβ como um microcosmo simbólico do mundo moderno em que ninguém está em casa, um espaço plurifuncional, um lugar para fugazes encontros, desencontros e prestação de serviços vários como castings para anúncios publicitários ou lançamentos de livros. Sentado entre os espectadores, na plateia da sala em tons vermelhos do Teatro Nacional São João, Zacarias Werner interpela Sílvia Kessel no palco onde se ergue o cenário do hotel, desenhado por João Mendes Ribeiro. Os dois grandes blocos num outro tom de vermelho, girando sobre eixos para permitir a rápida mutação das cenas, traduzem duas imagens representativas da dramaturgia da peça: as portas giratórias do hotel, por onde uma centena de personagens entra e sai para cenas muito breves, e o livro que traça o fio da história que une e separa as duas personagens principais, Zacarias Werner, o bobo, e Sílvia Kessel, que ora é ora deixa de ser a sua mulher. Palco e plateia, actores e espectadores, fundem-se e confundem-se, pois, afinal, esta noite está-se na pancomédia, no grande teatro do mundo que abarca este mundo e o outro: aqui partilha-se o tempo e o espaço e convive-se sem compromisso com gente muito diversa, homens de negócios, detectives, viajantes, fadas, anjos e seres esquecidos de um passado histórico.

Entre a panóplia de figuras que entram e saem do Hotel Confidence, destacam-se alguns pares recorrentes, como o par descomprometido dos dois protagonistas, Jodie e Jennifer, as duas recepcionistas, Alfredo e Vittorio, os dois artistas de variedades, mas os seres solitários são predominantes. A maior parte dos actores desdobra-se em três ou quatro personagens. Algumas não chegam a ter nome, caracterizam-se apenas por género, idade, profissão, maneira de ser ou situação momentânea: a mulher da mesa ao lado, um homem com alguma idade, o chefe da recepção, um céptico, um hóspede. Bernardo Monteiro e a sua equipa de costureiras não têm mãos a medir. Os figurinos multiplicam-se e exigem mudanças de roupa em segundos. Corrupio e torvelinho, dentro e fora de cena. É esse o ritmo do espectáculo, definido pela encenação de João Lourenço, que lê a estética do fragmento, do esboço e do instante de significados múltiplos desta pancomédia como forma de representação do compasso acelerado do mundo contemporâneo. Importa-lhe escavar o que parece não ter fundo, seguindo a convicção de Botho Strauβ de que “há elementos fundamentais que estão soterrados e que hoje talvez só se tornem visíveis em iluminadas fracções de segundo”.

A aceleração é potenciada por diversas operações dramatúrgicas que alteram o ritmo das cenas e reduzem a duração do espectáculo como um todo, fazendo cortes em todas as cenas, omitindo uma por completo e transformando outras em canções, como aquela em que Sílvia recorda como ordenou as folhas de um manuscrito com Zacarias “com a perícia de acrobatas […] num equilíbrio periclitante/ entre a mesa, a cadeira e a estante”.

Nos seus “Comentários à música”, Eurico Carrapatoso salienta que é a primeira vez que uma partitura sua é executada “pela infame, contudo infalível, ‘Microsoft Symphony Orchestra’, uma espécie de orquestra virtual sem consciência sindical”. Curiosamente, o suporte acaba por se revelar apropriado ao ambiente do Hotel Confidence, permitindo que os sons se sigam “uns aos outros como baratas tontas, ora frenéticos, ora acutilantes, ora cínicos, ora sinistros, ora oníricos, ora grotescos”.

O que fica do que passa? Que imagens guarda a memória da experiência intensa de um espectáculo efémero? Que momentos regista de um caleidoscópio de cenas e figuras como o da pancomédia? E a qual deles lhe cabe dizer o “Fica, tu que és tão belo!” do Fausto de Goethe? O momento da cena da pancomédia em que as mesas avançam sobre rodas, movidas pelas figuras sentadas, o espaço fica repleto de conversas sussurradas que um anjo escuta e dá a ouvir, inclinando uma grande orelha ora sobre uma ora sobre outra.

*Professora universitária, dramaturgista.

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16 Outubro – 9 Novembro 2003
Teatro Nacional São João

O Bobo e a Sua Mulher esta Noite na Pancomédia

de Botho Strauβ
encenação João Lourenço
coprodução Teatro Aberto, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna