100 anos, o tempo de um sopro

JOÃO REIS*

“Quanto tempo dura o espectáculo?” Pode ser, em muitas circunstâncias, a pergunta mais erudita e recorrente do espectador comum. Como se a minutagem determinasse alguma coisa de importante ou superlativa relativamente à nossa atenção ou prazer. Mesmo em espectáculos em que a nossa resistência foi posta à prova, isso não só não valida a pergunta, como a resposta, qualquer que ela seja, soa sempre a tentativa de epitáfio. A elogio redutor. Se a duração for curta e corresponder a um limite imaginário, 90 minutos por exemplo – em Milão há um festival onde os espectáculos não podem ultrapassar essa duração –, o epitáfio é o louvor que condena antecipadamente uma característica a que chamaria de disponibilidade imediata e inquestionável para ver teatro. Precisamente, o lugar privilegiado onde a noção de espaço e de tempo faz operar, ou opera em nós, um outro modo de ver – um modus operandi –, uma suspensão que torna qualquer espectador num potencial candidato a viajante do dia. E já sabemos que para viajar é preciso tempo.

Chego até aqui apenas para nomear o óbvio: há espectáculos de uma hora que duram uma eternidade e espectáculos de quatro que duram o tempo de um sopro. Esta é a minha teoria da relatividade, mesmo sabendo que quase todos os sinais do mundo contemporâneo contrariam esta tendência.

Devo dizer, em minha defesa, que quando recebi este convite a minha escolha enquanto espectador fora já tomada por alguém, que seguramente, e como eu, queria ter resolvida a questão da motivação – no meu caso, essas quase quatro horas de As Três Irmãs, de Tchékhov, encenada por Eimuntas Nekrosius – e que, por isso, não podendo fazer uso dela, dedicar-me-ei a uma outra perspectiva, não menos ambiciosa e eventualmente romântica, ou patética, até?

Na perspectiva de Hamlet – personagem que interpretei por duas vezes, pela mão de Ricardo Pais –, o lugar de espectador tem um duplo desígnio, já que ele é, ao mesmo tempo, construtor e espectador da sua própria tragédia.

Durante este período, com mais ou menos ênfase, habituei-me a criar para mim a síndroma do espectador impaciente, precisamente aquele que no início da tragédia quer experimentar rapidamente o golpe misericordioso que anuncia o fim da história, confirmando não só o que já sabe, e que por essa via também antecipa, mas que na verdade pretende tornar mais curto. É na reconstituição da vertigem que Hamlet se decide. Dito de outro modo, foi pela reconstituição do assassínio de seu pai, dando indicações minuciosas à trupe de actores para bem reproduzir o enredo e as falas, que Hamlet assumiu o seu lugar de espectador privilegiado, ignorando hesitações e dúvidas e fazendo uso da sua enorme ironia.

Hamlet tem a liberdade de escolher o seu destino – a sua personalidade e a sua condição assim o determinam – mas o espectador comum, impedido que está de se afastar do guião, torna-se impaciente, quer chegar rapidamente ao que lhe foi prometido. Isto emana sobretudo da leitura e da interpretação dos clássicos.

Reavivar e reactivar a memória do que já conhecemos pede que sejamos surpreendidos por algum misterioso índice, que nos faça permanecer interessados até ao fim.

Sabendo naturalmente que Hamlet é, aqui, apenas uma projecção metafórica, eu diria que a experiência e o prazer de retardar a acção – alimentada por fantasmas, solilóquios, disputas e derivações de humor e de retórica – transformam a personagem no exemplo de um inesperado e valioso espectador. Precisamente aquele que rentabiliza com gosto o inevitável desenlace.

Bem sei, isto é matéria diletante, são águas que não se misturam, a do intérprete/espectador; há aqui um inesperado conflito de interesses, uma perfídia inadmissível, mas gostaria de poder dizer que foi nesta enorme desordem de conceitos e de papéis que eu encontrei matéria para reflexão.

Talvez porque, enquanto espectador, o São João me ensinou a ser tão exigente e errático como Hamlet. Talvez porque em muitos aspectos tenha sido uma Escola.

Uma Grande Escola. Talvez porque tenha um público generoso e por isso mais profícuo e mais paciente e disponível. Talvez porque produziu das edições e textos de apoio mais cuidados que me foi dado ver, e com esse gesto prolongou a duração do nosso olhar e da nossa memória sobre os espectáculos. Talvez porque tenha, desde sempre, pessoas e companheiros inesquecíveis nas mais diversas funções. Talvez porque a pergunta inicial seja ainda, e aqui, passados 100 anos, uma ameaça remota e sem fundamento. Talvez isto. Talvez aquilo.

Talvez que daqui a 100 anos possamos estar ainda todos juntos como espectadores, em diferentes lugares, no pó dos livros, na matéria incandescente que sobrou e na memória. Seria um excelente sinal.

*Ator, encenador.

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20 Abril – 4 Maio 2002
Teatro Nacional São João

Hamlet

de William Shakespeare
encenação Ricardo Pais
coprodução Ensemble – Sociedade de Actores, Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Viriato – CRAEB, Instituto Português das Artes do Espectáculo – Auditório Nacional Carlos Alberto, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna