Instrumentos do demónio

FERNANDO MATOS OLIVEIRA*

A Sessão Especial que se anunciava para o dia 19 de novembro de 2016, ao juntar em três partes Os Últimos Dias da Humanidade, obra de espírito agonístico e exercício radical de composição dramática, da autoria de Karl Kraus, prometia um espetáculo extralongo: “I. Esta Grande Época” (dur. aprox. 2:00, com intervalo); “II. Guerra é Guerra” (dur. aprox. 2:20, com intervalo); “III. A Última Noite” (dur. aprox. 2:20, com intervalo). Tratava-se de uma proposta de engenho e ousadia, vinda de um Teatro Nacional que, no próprio contexto da austeridade orçamental então vigente, interpretava do modo mais amplo a sua missão fundamental, reunindo meios extraordinários, o melhor da sua equipa residente e um conjunto vasto de intérpretes, seguramente desafiados pela própria audácia contida na proposta. A encenação de Nuno Carinhas e Nuno M Cardoso operava sobre um trabalho textual que incluía ainda João Luís Pereira e Pedro Sobrado, um verdadeiro comité dramatúrgico, dotado de experiências cruzadas com a palavra, a encenação e a edição, na verdade eixos de ação e resistência que fizeram parte do próprio percurso de Karl Kraus, na sua demanda intelectual, política e assumidamente publicista.

Já na viagem diurna (para variar) de Coimbra para o Teatro Nacional São João – o espetáculo decorreu entre as 15:00 e as 23:00 – me interrogava sobre os caminhos convergentes que conduziram a este espetáculo raro, considerando o mundo do teatro aquém e além-fronteiras. Entre esses caminhos propiciatórios recordava a tradução de um professor (entretanto colega) que conhecera em finais da década de 80, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, como coautor de um manual didático que era então porta de entrada para os alunos interessados no universo germânico. O volume em causa fora editado em 1988 e designava-se Dois Séculos de História Alemã, tendo como subtítulo Política, Sociedade, Cultura, uma tripla especificação que diz algo sobre o alcance tanto da tradução (Grande Prémio SPA 2017) de António Sousa Ribeiro, como sobre as várias inscrições ativadas por esta obra inominável de Karl Kraus.

Foi neste estado de espírito que li e compreendi o tom exaurido das palavras de Nuno Carinhas, a abrir o excelente Manual de Leitura, a que deitei a mão à entrada do TNSJ: “Já basta a desmesura desta tarefa para a qual se constituiu exército de artistas jovens e seniores (como só nas guerras da Arte é permitido e rentável). Já basta de palavras que informem ou justifiquem escolhas, percursos e indecisões.” E no entanto, nesse mesmo Manual, como nos melhores produzidos até então entre nós, por exemplo, nos anos feéricos do Teatro da Cornucópia, o espectador que eu era no dia 19 de novembro teve a oportunidade de, simultaneamente, antecipar e prolongar o contacto com a política, a sociedade e a cultura que se confrontavam no texto e no espetáculo. Aí se podiam ler declarações dos encenadores; o prefácio de Karl Kraus; reflexões complementares de António Sousa Ribeiro, Roberto Calasso, Edmundo Cordeiro, Rui Bebiano; preciosas “Notas etnográficas sobre a montagem em curso de uma peça impossível”, por Bruno Monteiro; informações várias sobre a cronologia da Grande Guerra e a fábrica da escrita krausiana; uma nota pessoal de Walter Benjamin sobre o autor, no seu registo sismográfico, convocação final para um encontro com o “monumento funerário” que se desenhou até quase à meia-noite no mesmo dia.

E seria perante este universo de vozes e sugestões que o texto monumental, interpretado por uma vintena de atores, se materializou num espaço cénico que ocupava, por direito de ingerência, não apenas o palco, mas toda a plateia e ainda os corredores de acesso. Vozes, palavras e corpos movimentaram-se durante sete horas, com vários intervalos, em orquestração maior: um teatro expandido como poucos, no qual se esgotaram as formas habituais da atenção, dando origem a um espetáculo-ritual, uma experiência abissal da palavra dita, repetida, gritada.

Sabemos que a duração de um espetáculo resulta mais da nossa experiência pessoal do que do tempo medido apenas pelos ponteiros do relógio. Espetáculos curtos alongam-se frequentemente e outros previsivelmente extensos são vividos ao ritmo da cena que verdadeiramente sabe produzir a duração, através do modo como a encenação e a dramaturgia organizam a palavra, o movimento e toda a materialidade que compõe o mundo infinito do teatro. Há uma conhecida afirmação de É. Benveniste (linguista francês que nasceu curiosamente na mesma cidade destruída de Alepo que aparece a ilustrar o texto de Nuno Carinhas) que define a noção de temporalidade como sendo fundamentalmente o resultado da “inserção do discurso no mundo”. É a esta ordem de coisas que pertencem espetáculos como Os Últimos Dias da Humanidade.

*Investigador teatral, professor da Universidade de Coimbra, CEIS20.

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27 Outubro – 19 Novembro 2016
Teatro Nacional São João

Os Últimos Dias da Humanidade

de Karl Kraus
encenação Nuno Carinhas, Nuno M Cardoso
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna