O que me disse Molero

MARA CARVALHO*

Na cidade onde nasci e cresci havia um teatro cujas portas nunca vi abertas.

Nos anos 80, em Portugal, as cidades pequenas não tinham infraestruturas culturais. O teatro, o cinema, as óperas entravam-nos em casa através da televisão, e a ficção televisiva – nacional e estrangeira – era um dos principais focos do entretenimento nacional.

Ir ao teatro, na altura, ainda não era coisa do quotidiano para quem crescia num país com um regime democrático jovem. Lembro-me de ter na sala de aula da segunda classe um cartaz de promoção institucional com o slogan “Vá ao Teatro”, por baixo de um desenho de uma máscara veneziana. Nessa altura, imaginava que ir ao teatro deveria ser uma coisa extraordinária, mas só alguns tinham acesso.

Mudei-me para o Porto já na adolescência, em meados dos anos 90. Nessa altura, o Porto era uma cidade muito diferente da que é hoje e a sua vida cultural rodava em torno de umas poucas estruturas públicas. Apanhei o Teatro Nacional São João nas suas obras de recuperação, o Teatro Carlos Alberto ainda não tinha sofrido a intervenção que o tornou no que é hoje, uma das estruturas fundamentais para o crescimento e desenvolvimento cultural da cidade, e no Teatro Sá da Bandeira imperava o teatro de revista, um género que não era da minha preferência.

Onde cresci, nunca a cultura foi uma prioridade e uma ida a um espetáculo parecia um luxo que não podia custear. Já no Porto, comecei a trabalhar ainda enquanto estudava e, no final dos anos 90, tinha independência financeira e podia, finalmente, escolher as minhas prioridades.

Em 1999, estreei-me como espectadora de teatro no São João com a maravilhosa peça O Que Diz Molero, encenada pelo não menos maravilhoso António Feio, que se fazia acompanhar, na representação, pelo José Pedro Gomes.

Quando decidi que queria ir ver a peça, dei-me conta de que os bilhetes já tinham esgotado e que dificilmente os conseguiria comprar. Mas eu estava decidida a ir e não esmoreci. Numa quinta-feira, dia do teatro, lá fui eu com antecedência para a bilheteira indagar se haveria desistências de bilhetes reservados. A fila era enorme. Esperei pacientemente e quando chegou a minha vez foi-me dito que, dada a grande afluência de espectadores, tinham decidido abrir o último piso, acima do segundo balcão. Ora, fiquei felicíssima e lá fui eu!

Entrei no teatro e fiquei maravilhada. As escadas, o interior da sala, o palco e aquele teto, do qual eu estava tão perto, tudo era espantoso! Houve, no entanto, uma coisa de que não gostei tanto: o meu lugar tinha uma coluna à frente e eu não ia conseguir ver a peça sem ficar com um torcicolo ou perder boa parte do que se passaria em palco. Falei com o assistente de sala responsável, que, segundos antes de a peça começar, me indicou que poderia trocar por um lugar livre no segundo balcão.

Tinha o palco mesmo por baixo de mim. Debruçada no balcão, vi o cenário, vi os atores a entrar, vi todos os detalhes do que se ia passando… E tudo ali tão perto.

Sobre a peça, não há muito que possa acrescentar ao que já é mais do que sabido: extraordinária! Desde o texto original, do Dinis Machado, à adaptação para teatro, aos figurinos e caracterização, que criavam um universo único, à interpretação e, obviamente, à encenação, tudo naquela peça é digno de registo na minha memória. Não me podia ter iniciado de melhor forma.

Hoje, ir ao teatro, e particularmente ao São João, faz parte das minhas rotinas. Já fui muito feliz nessa sala de ar majestoso, já chorei, já ri, já me emocionei, já vi muitas coisas boas e outras de que não gostei tanto. Já vi atores incríveis, dos melhores encenadores, nacionais e estrangeiros, textos originais para teatro e outros adaptados. Já vi dança, performances e teatro clássico. Mas a magia de O Que Diz Molero permanece na minha memória de uma forma especial. Foi com esta peça que me abri para todo um mundo novo que, afinal, não é para elites nem só para alguns, mas para quem sente que a arte faz parte da vida.

*Economista.
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30 Setembro – 17 Outubro 1999
Teatro Nacional São João

O Que Diz Molero

de Dinis Machado e Nuno Artur Silva encenação António Feio
coprodução Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna