al mada nada. Tudo. O rufar do tambor, as saias nas pernas dos homens musculados. As cores das saias deles. O rodopio. O sussurro da travagem das palavras. O meu amor… Bonito.
É noite e estou sentada na cadeira de veludo. Sofro por saber que Almada, de fácil, não tem Nada. Antecipo o sofrimento do meu amor. Interrogo-me se vou (ou não) entender. Se conseguirei entregar o coração e esquecer o intelecto, o esforço da compreensão que distrai o sentimento. Sorrio.
Entram, no meu coração, os pedaços de revolução, os bella ciao do bater das baquetas na pele esticada da tarola, os bella ciao das cores de Portugal, os bella ciao do folclore, os bella ciao das suspensões, os bella ciao da batalha. O universo virado do avesso, com pernas que se movem para caminhar no ar. O respirar da plateia, o pulmão do público, que acompanha o bailarino-cavalo, sensual, quente, transpirado, pleno de gotas de suor como se antecipasse um orgasmo. A voz, o muro amarelo ao sol…, aquela voz a romper de calor os corpos da assistência, a antecipar a explosão. O trocadilho das palavras, amarelo, guarita, sol… Outra vez… Amarelo, guarita, sol… O calor… O calor… O sol a aquecer os corpos. A plateia a encher-se de cheiro a um Portugal que não conheci, mas que reconheço nos genes. O orgulho. O orgulho de ser portuguesa, o orgulho de amar, o orgulho de ser amada, o orgulho de ter parido, o orgulho de ter família, o orgulho de estar viva. Apetece-me balançar o corpo, acompanhá-los na viagem. Entrar na janela de um tempo mais escuro. Apetece-me trepar a rampa de madeira e rebolar no meio dos panos estampados a corações de Viana e a galos de Barcelos. Vejo mulheres nos corpos dos homens. São masculinos e femininos ao mesmo tempo. Os sapatos de verniz nos pés cautelosos, que sabemos poderem escorregar a qualquer momento. Fico presa, capturada, convencida, apaixonada, num tempo qualquer que desejo parado, que desejo eternizar numa memória preto e branco a cores. Não escondo o amor que sinto por aquele homem tão belo, tão profundo, tão meu… Não escondo a admiração, a sensação de que depois daquele momento maravilhoso se seguirá outro ainda melhor. As fileiras de soldados que se unem e desunem. O romper da fileira, o construir do círculo, o canto da rua escura onde dançam os soldados. Bêbados, escondidos da humanidade que julga ver neles a salvação. Vestem as saias, divertem-se, provocam-se, são cavalos e pavões. Zora… Zoraaaaa… São homens iguais aos outros. Homens que partem para a guerra novos demais. Rufa-me esse tambor… Rosto de homem e coração de criança. E tudo por causa da Zora. Medo e coragem… Puta, estupor. Luta e pausas para cigarros. O fumo dos cigarros sem filtro a passar no meio da comitiva de povo que aplaude na chegada. O fumo dos cigarros sem filtro no meio da comitiva de povo que chora na partida. O orgulho. E mais uma vez as palavras. Muito soltas como pássaros livres, que se cruzam sem se tocarem. Uma palavra, outra, como o bater de muitos corações. As palavras como notas em partitura, como música sem instrumento, como canto sem canção. Há uma harmonia confusa, um salpicar intenso de memórias e de futuro, de passado e de premonição.
Voltei várias vezes à cadeira de veludo. De todas as vezes senti o mesmo, como uma droga que se espalha no ar e que, sem nos apercebermos, nos deixa cambaleantes. Sinto-me grata.
al mada nada. Tudo.
*Dramaturga.
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26-29 Março 2014
Teatro Nacional São João