Um longo poema que vai

RITA CASTRO NEVES*

A performance de que vos quero falar é do António Poppe e integrou a segunda e última edição do brrr – Festival de Live Art, em 2003. A curadora do festival fui eu, e a espectadora também. Ser programadora de um evento é muitas vezes isso mesmo, o desejo de criar encontros de várias espécies: de artistas com lugares, de artistas com públicos, de artistas com artistas, de lugares com lugares, de diferentes tempos. E depois ser-se espectadora de tudo. Tentar fazer o evento em que sempre quisemos participar.

A estreita relação com a cidade que o brrr perseguiu tinha em conta a particular implantação geográfica do Teatro Nacional São João, numa prática ancorada na tradição site-specific das artes plásticas. Todas as obras apresentadas aconteciam na cidade, em espaços exteriores e interiores, com apenas uma ação programada para o interior do Teatro São João, no átrio de entrada. Era uma tentativa de em simultâneo fazer um fora do teatro e um teatro por aí fora.

O convite que fiz ao artista, performer e poeta António Poppe era o de criar uma obra nova para um lugar que eu lhe sugerira: o coro alto da Igreja de Santa Clara. E quando o António veio ao Porto visitar esse espaço do antigo convento franciscano do século XV (e outro que lhe propus, e onde também fez uma performance, o claustro da Biblioteca Municipal), veio com a Mumtazz, uma colega minha do tempo do Ar.Co, e juntos percebemos que era o lugar certo. Confirmei com ele o que tinha ouvido dizer a outro amigo comum, que o António durante algum tempo teve por ateliê uma antiga capela privada, onde experimentação e vivência ecoaram pela acústica granítica, numa simetria auspiciosa para uma performance em latência. Mais recentemente, revi o António, que me contou como aquele coro alto fora importante para o poema coletivo O Agitador e a Corrente, que ele e a Mumtazz foram desenvolvendo depois ao longo do tempo, e que o António continua a evocar a solo (mas não tanto), agora que a Mumtazz nos deixou (mas não totalmente).

Queixume Ardente Idade do Som aconteceu às 20:00 de uma sexta-feira, hora improvável e especial para aqueles que, resistindo ao seu peso, se juntaram à porta da Igreja. Ninguém ficou de fora, ainda que os lugares disponíveis não fossem tantos assim. Subindo ao coro alto altamente decorado – ainda que um pouco menos do que a estonteante talha dourada barroca que desde o século XVIII caracteriza a sala maior da Igreja –, ficámos rodeados de azulejos, telas e teto de caixotões e, sobretudo, envoltos numa estrutura de madeira onde se sentavam as monjas, onde nos sentámos nós. Diz-se desse lugar que é em U, em sintonia perfeita com o António que, entretanto, chega.

É um corpo só, um homem num lugar construído para mulheres. A situação não podia ser nem mais simples nem mais complexa: as palavras começam e é um longo poema que vai. A cabeça olha a mão, olha o teto, a outra mão, o corpo dobra-se a meio, e desdobra-se, é como se não houvesse pausas, como uma caminhada em curso, um pé a seguir ao outro. As frases sucedem-se em sentidos novos, não é óbvio, aqui e ali reconhecemos trechos, são canções de que gostamos, que se encadeiam em ligações inesperadas, vibração do poema-matéria, reverberações, palavras que se repetem, como a quem falha a memória, e de novo arranca, impulso.

Durante a performance há um sentir comum, é aquele sentimento de privilégio quando poucas pessoas estão juntas a fazer parte de algo muito especial, acontece às vezes, é como um transe coletivo, mas aqui é reforçado pela peça escultórica em que estamos sentados: o cadeiral entalhado de madeira escura é um só. Estamos juntos ainda que solenemente isolados, cada um dos nossos corpos, envoltos em madeira, costas contra o espaldar reto, imersos em arquitetura, na história dos corpos das clarissas que ali se sucederam, assistindo à missa sem serem vistas da nave central. Condição feminina, condição monástica, fruição invisível, presença escondida, de um conventual que não é doce.

O corpo da palavra do António – espalhando-se qual genius loci – é contido e expansivo, o respirar da meditação, um sopro sentido por dentro em fluxo xamânico, um trilho contínuo que ecoa, que ecoa em nós o privilégio de sermos espectadores, de nos irmos acontecendo cada vez mais como seres ouvintes-sentintes.

*Artista, curadora, professora.

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27+28 Junho 2003 Igreja de Santa Clara

Queixume Ardente Idade do Som

de António Poppe produção Teatro Nacional São João | brrr – Festival de Live Art

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna