A Grande Vaga de Frio ou Emília Silvestre como metáfora do Mundo

VALDEMAR CRUZ*

Impôs-se um intenso fator de estranheza na primeira vez que me foi possível contactar com o que era, ainda, um esboço do espetáculo a apresentar mais tarde no Teatro Carlos Alberto. A fria e nua sala de ensaios no Teatro Nacional São João acolhia uma Emília Silvestre disposta a arrancar das entranhas um intenso e ousado desafio, plasmado naquela ideia de, a partir de Orlando, de Virginia Woolf, abraçar uma dramaturgia construída por Luísa Costa Gomes.

Tudo ali me parecia estranho. À medida que Emília evoluía naquele espaço neutro, apenas armada das palavras construídas para um monólogo despido de drama, mas, afinal, ancorado numa intensa carga dramática, menos útil me parecia convocar demasiadas memórias ou imagens do romance de Woolf, transformado ao longo dos tempos num dos grandes textos dos estudos de género.

A curiosidade centrava-se, também, naquele título, retirado de um dos capítulos de Orlando. Aí, a memória de uma leitura antiga sugeria poderosas imagens de violência, arrasadores sentimentos de impotência perante milhares de pessoas consumidas até à morte por aquela grande vaga de frio que gelou o Tamisa. Esta opção por evocar um episódio real, mas desconectado do que sempre tem sido o foco de leitura do texto de partida, constituía, desde logo, outro elemento de estranheza.

O ensaio prosseguia e cada vez mais se avolumava em mim a certeza de estar a presenciar um momento único na carreira de uma intérprete com um percurso que a coloca como a grande atriz portuguesa da sua geração.

Olhava para aquela raiz de carvalho suspensa, ou para o que seria depois um alçapão com terra onde, logo no início, Orlando enterra o seu livro, e percebia como o talento, a segurança, a capacidade de representar como se fora uma extensão do respirar enquanto absoluto meio de sobrevivência, constituem a expressão de uma genialidade materializada no corpo franzino de uma mulher com voz na aparência frágil.

Na sala ecoava uma história a várias vozes. Uma história estranha acondicionada num monólogo do qual não resulta a criação de qualquer personagem. Da qual não resulta a criação de uma tensão dramática.

Ao ver A Grande Vaga de Frio por fim apresentada em palco, com a raiz de carvalho bem no centro a construir, por si só, um discurso de múltiplas leituras, percebi, como nunca antes me apercebera, Emília Silvestre, ou a personagem que poderia encarnar, mas não encarna, ou o narrador que poderia ser, mas não tenho a certeza de que o seja sempre, entregue à sua própria solidão.

De alguma forma, esse foi para mim um segundo e poderoso momento de adesão a uma encenação que me povoou o imaginário durante dias consecutivos. De novo, não eram as infinitas leituras e interpretações proporcionadas pelo romance sobre questões de identidade e de género a interessar-me, ou outras reflexões colaterais, muito úteis para um debate aprofundado sobre os múltiplos caminhos suscitados pela labiríntica obra de Virginia Woolf.

Ou, dito de outra maneira, embora não ficasse indiferente a todo um conjunto de interrogações colocadas no tempo de escrita de Orlando, publicado pela primeira vez em outubro de 1928, e ainda hoje perturbadoramente presentes, a minha inquietação dirigia-se antes de mais para aquela imensa, triste, dolorosa solidão plasmada em palco por uma Emília Silvestre que, paradoxo maior, em simultâneo emanava uma sensação de totalidade, no sentido em que, mesmo só naquele terreno inóspito, a atriz era o mundo e nela se consumia o mundo todo.

*Jornalista.

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10-19 Novembro 2017
Teatro Carlos Alberto

A Grande Vaga de Frio, com Orlando de Virginia Woolf

texto Virginia Woolf
conceção e direção Carlos Pimenta
coprodução Ensemble – Sociedade de Actores, Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna