Para nós, o teatro é o lugar de confrontação do público consigo próprio, enquanto colectivo. E mesmo depois de dezenas de anos como espectador, às vezes temos a felicidade – e ainda bem – de sermos apanhados por uma obra onde o intérprete se “encena” a si próprio.
Vem isto a propósito de Josef Nadj e do seu Mnémosyne, uma performance cénica integrada numa exposição de fotografia ou, visto de outro modo, uma exposição fotográfica que se prolonga numa performance cénica. Estamos imersos num ambiente compósito, uma instalação onde se sente a vontade de criar/apresentar uma situação artística de questionamento, que, segundo a experiência de cada visitante/espectador, se pode igualmente transformar num espaço de reflexão e/ou – porque não? – de pensamento.
Vagueamos pelo percurso expositivo, onde as fotografias já iniciam o condicionamento do nosso olhar, na expectativa de um último enquadramento para a performance que se anuncia, mas que ainda não se vislumbra.
As referências que transparecem, de certo modo, por entre as sombras das fotografias a preto e branco apontam no sentido de um confronto com a essencialidade das imagens, direccionando o olhar para uma espécie de vazio pronto a ser preenchido.
Só então temos acesso ao interior da câmara escura, lugar íntimo e concentrado, situada no centro do espaço expositivo, onde tem lugar a performance cénica.
Aí somos sugados para o interior de uma sequência de gestos, mímica intensificada por uma gestualidade expressiva do corpo com origem nas paixões e na dor. Gestos ínfimos e íntimos, formas arcaicas de identificação mimética com o mundo, que procuram uma ligação com a essencialidade dos pequenos objectos, extraídos das fotos, que se revelam agora como brinquedos.
A câmara escura faz-nos sentir por dentro de uma elaboração que se desenrola diante dos nossos olhos, a qual, ao acontecer sem a presença da palavra e apenas com a emissão ocasional de pequenas expressões no limite do audível, exige ao espectador uma concentração similar à que o intérprete pratica e exige de si mesmo.
Uma imersão na memória colectiva, de 20 minutos, para uma vintena de espectadores, onde estão inscritas experiências emotivas da humanidade: fantasmas, sombras, espectros, deslocamentos de temporalidade.
“É tudo o que neste momento tenho para dizer”, dirá Josef Nadj numa conversa informal após o espectáculo. A procura de uma “obra de arte total” que nos recorda outras procuras, igualmente radicais, levadas a cabo pelo alemão Aby Warburg com o seu Atlas, mencionado no programa, mas também por Raymond Roussel.
E assim, com este testemunho, queremos manifestar a nossa gratidão ao Teatro Nacional São João por, ao longo dos anos, ter incluído na sua programação um vasto leque de espectáculos, como Mnémosyne, que levam junto dos espectadores uma diversidade de visões artísticas do questionamento que a existência humana levanta a cada ser. A arte de sermos humanos.
*Encenador, diretor do Teatro Pé de Vento.
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17-20 Janeiro 2019
Mosteiro de São Bento da Vitória