O ano é 2012 e Portugal está em pleno período de austeridade. No Teatro Nacional São João, as setas de uma placa com a palavra “Viena” apontam para o palco e relembram que a Europa que financiou as autoestradas é agora a Europa da Troika e dos programas de “assistência”. Um Duque permissivo (Pedro Frias) deixa “Viena” nas mãos do seu severo regente, Ângelo (Cláudio da Silva), tal como José Sócrates deixou Portugal para estudar na Sorbonne depois de entregar o país a Pedro Passos Coelho e Vítor Gaspar. O Duque regressa no final e, através do seu teatrinho, retoma o poder, lembrando o regresso triunfal de Sócrates como comentador televisivo. O castigo do regente corrupto é um casamento forçado com a mulher que abandonou no passado, num final supostamente feliz onde só um dos vários casamentos é voluntário.
Medida por Medida foi o segundo Shakespeare de Nuno Cardoso, depois de Ricardo II em 2007. À semelhança dessa primeira encenação, Medida por Medida examinou o estado atual da democracia portuguesa, com destaque para os seus representantes políticos. Encenou o estado da nação num Teatro Nacional para os seus cidadãos/cidadãs, uma visão coerente da missão dos teatros nacionais. A visão satírica dos mecanismos do poder de Cardoso encontrou um porta-voz em Medida por Medida na personagem de Lúcio, que ao longo da peça desconstrói as pretensões dos líderes e da população de Viena. É a figura que todos os líderes receiam porque não tem medo e não deixa que a sua condição de súbdito o torne obediente e submisso. O ator Daniel Pinto fez dela a personagem principal deste espetáculo. No programa de sala, Fernando Mora Ramos fala em “homo austeritus” e o Lúcio de Daniel Pinto, que sabe navegar as marés da austeridade em benefício próprio, representou aqui as várias estratégias de sobrevivência da população portuguesa durante os anos de austeridade. Não era uma figura heroica de subversão ou de transgressão, mas um chico-esperto que sabe aproveitar as suas oportunidades.
Madame Bem-Passada (Catarina Lacerda), na tradução de Fernando Villas-Boas, junta o fator “austeridade” às suas justificações para uma clientela reduzida no bordel que mantém ilegalmente sob o regime de Ângelo, criando um paralelo entre a austeridade económica e a austeridade sexual. No cartaz do espetáculo aparecia uma mulher nua com pixéis a cobrir a sua genitália, revelando a continuidade da repressão sexual da mulher desde os dias de Shakespeare até hoje. Nesta encenação, a sexualidade era enérgica, transgressiva, multidirecional. Contudo, os castigos foram igualmente fortes. Os prisioneiros sexuais de Ângelo foram humilhados diariamente nas prisões de Viena, com torturas que relembraram as de Abu Ghraib por soldados americanos. A única personagem que não participou neste jogo de crime e castigo foi a freira Isabela (Sara Carinhas), que, mesmo assim, sofreu uma tentativa de violação por parte de Ângelo e uma proposta de casamento do Duque igualmente abusiva. Neste ambiente predominantemente masculino, reforçado nesta encenação, não havia lugar para uma mulher encontrar um espaço ou levantar a sua voz. O facto de não existir uma figura feminina no drama real da austeridade, a não ser a de Assunção Cristas, para construir um paralelo em palco, também não ajudou a atriz.
O trauma da austeridade é um período que tod@s querem esquecer. No entanto, se o papel de um Teatro Nacional é olhar tanto os momentos negros da nossa cultura contemporânea como os seus pontos de luz, este Medida por Medida iluminou um período trágico da história recente, desta vez não como tragédia, mas como farsa nacional.
*Professora no Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho.
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5-13 Maio 2012
Teatro Nacional São João