O Teatro Nacional São João proporcionou-nos a oportunidade de assistir a uma produção de ópera do Teatro Nacional de São Carlos. Sendo, infelizmente, o único teatro de ópera no país, só muito pontualmente podemos assistir aos seus espectáculos fora da capital. Por outro lado, o TNSJ traz-nos frequentemente, não só teatro, mas também música (sobretudo em finais do século passado) e dança (mesmo após a incumbência do Teatro Municipal do Porto de trazer a dança à cidade). Brindou-nos com um espectáculo de ópera de grande qualidade, fruto de uma parceria entre o Porto e Lisboa, escolhendo uma “ópera de câmara” (com orquestra de pequena dimensão), como lhe permite o fosso que lhe está destinado.
The Rape of Lucretia contou com uma encenação atractiva de Luis Miguel Cintra, associada a efeitos de luz eficientes e guarda-roupa algo intemporal, mais à época em que a ópera foi concebida (primeira apresentação em 1946, em Glyndebourne) do que àquela que a história retrata. Sob a batuta de João Paulo Santos esteve um conjunto de intérpretes residentes em Portugal de grande qualidade. O tenor Mário João Alves foi um eficiente “Coro Masculino”, enquanto o “Coro Feminino” foi representado pela voz cristalina da soprano Dora Rodrigues. Presença habitual em Lisboa e ocasional no Porto, Luís Rodrigues (o barítono que interpretou, entre outros, os papéis de Scarpia, Papageno, Nick Shadow e Lord Rochefort) foi um excelente Collatinus. A heroína do papel titular foi brilhantemente interpretada por Maria Luísa de Freitas, também ela presença assídua nos nossos mais importantes palcos (Baba, a turca, Fenena, Marie de l’Incarnation, entre outros papéis da meio-soprano). O papel de Junius Brutus coube ao barítono de origem colombiana Christian Luján, também revelação do TNSC. Ana Ferro vestiu, irrepreensível, o papel de Bianca. Finalmente, André Baleiro (Tarquinius) e Joana Seara (Lucia) completaram o conjunto de cantores líricos que (en)cantou.
O espectáculo cativou com a música, encenação e desenrolar da acção. Os Coros Masculino e Feminino localizam-nos no período histórico e vão contando a história, que podemos melhor compreender, ao som de uma música que se foi entranhando no decorrer da ópera. Sentimos ora tensão no confronto das vozes masculinas, ora tranquilidade com o conjunto das vozes femininas. Acção e música conduzem-nos progressivamente ao momento mais intenso e dramático da ópera. A cena no leito de Lucretia começa com uma música tranquila, prossegue com vozes agitadas. Os encontros entre esposa e marido são arrepiantes e a obra culmina com a morte da heroína. No final, juntam-se o marido, Junius, Lucia e Bianca, relembrando a morte e deixando-nos abalados, mas enriquecidos por um espectáculo muito envolvente no seu conjunto.
Na ópera, a Antiguidade Grega e Romana foi intensamente explorada no período barroco, em particular em numerosas óperas compostas por Haendel, esteve depois mais esquecida, sendo retomada pelo modernismo a partir do início do século XX (como o exemplo de Elektra, de Richard Strauss). Britten usa novamente um tema com mais de dois mil anos, com um libreto baseado numa peça de 1931, por sua vez inspirado no poema narrativo de Shakespeare. O tema é intenso, dramático. Envolve um vilão, um suicídio, vingança, e termina com a refundação de Roma.
As óperas de Benjamin Britten (1913-1976) não são das mais conhecidas do público, nem muitas vezes interpretadas. Não deixam, contudo, de ser obras de arte únicas que gostaríamos de ver mais nos nossos palcos. The Turn of the Screw (TNSJ em co-produção com o Estúdio de Ópera do Porto e a Casa da Música/Porto 2001) e a célebre Peter Grimes (em Lisboa, TNSC, 2017) têm sido excepções.
Fica aqui expresso o desejo de ver mais espectáculos como este, em colaboração com o nosso único teatro de ópera ou outras companhias (algumas já se apresentaram neste palco). A sala do TNSJ, apesar das limitações, sobretudo pela dimensão, permite-o em alguns casos. O Porto merece-o.
*Neurologista. Portador do Cartão Amigo TNSJ n.º 1268.
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5+7 Janeiro 2018
Teatro Nacional São João