Talvez o primeiro motivo pelo qual senti apreço por este espetáculo tenha sido a sua quarta parede. Soube-me bem ver um espetáculo em que nem a quarta parede estava ao serviço de uma ortodoxia teatral, como é hábito, nem a ambição experimental se manifestava pela abolição da quarta parede, com xs atorxs a falar com o público, evidenciando a já gasta recusa da personagem, ou a recusa da possibilidade mimética. Não sei se o meu contexto – que condiciona o modo como me relaciono com espetáculos de teatro – tem semelhanças com o contexto do inspirado Federico León e, por isso, não sei se esta quarta parede visava alguma coisa parecida com aquilo que eu vi nela. Acredito apenas que o modo como o espetáculo foi construído derivou diretamente da inteligência do seu programa dramatúrgico, acabando as opções formais por ser aquelas de que esse programa necessitava para se cumprir eficazmente (incluindo, designadamente, a quarta parede). Dito assim, parece simples e, no entanto, é tão difícil: optar livremente pelas formas que podem consubstanciar a qualidade da obra, em detrimento de codificações que possam identificá-las com um qualquer zeitgeist ou com uma qualquer ortodoxia (vai dar no mesmo: reconhecer é reconhecer).
Quando digo “possibilidade mimética”, quero referir-me à possibilidade de fazer no palco alguma coisa que se pareça realmente com aquilo que se passa fora do palco, nas nossas vidas. Em Las Ideas, dois homens – um artista e o seu assistente – representavam um artista e o seu assistente. Não eram eles na sua “vida real”; estavam num palco, portanto representavam. Representavam o que é o seu trabalho para conceber um espetáculo. A aparente proximidade entre o que faziam no palco e o que poderia ser o seu quotidiano apenas evidenciava a diferença entre ambas as coisas. A coincidência enfatizava essa diferença; evidenciava o contexto cénico como lugar de artifício. É essa a sua verdade, na verdade.
O virtuosismo da representação – ou seja, a semelhança entre o teatro e o seu referente – é notável em todo o espetáculo mas, em algumas situações, a verosimilhança fazia com que o público tivesse de confrontar-se com a dúvida: os atores estão de facto a fazer o que parecem estar a fazer, ou estão a fingir que o fazem? – um jogo alimentado pelo que os próprios dizem. É isso que se verifica, mais do que nunca, quando um deles fuma (ou não fuma?) droga.
Pode dizer-se que Las Ideas é um espetáculo cuja concretização é exímia. Precisa de o ser para cumprir o seu objetivo de conduzir a possibilidade mimética a um extremo de eficácia; a um nível total de verosimilhança; ao hiper-realismo. É verdade que a verdade do espetáculo se prende com o facto de o artista e o seu assistente estarem a mostrar o que é o seu processo de trabalho para conceber um espetáculo, supostamente de um modo verdadeiro, mas prefiro entender “as ideias” referidas no título também como uma hesitação entre Platão e Aristóteles: entre (1) a autonomia da ideia e (2) a inseparabilidade entre ideia e matéria. Considerando que Las Ideas é um espetáculo sobre o espetáculo, e que isso o coloca num âmbito de autorreflexão cujo paradigma terá sido a designada “arte conceptual”, a primeira possibilidade poderia ser identificada com a preponderância das ideias do espetáculo – ideias que, por sua vez, podem ser identificadas, quer com o conteúdo do processo de trabalho dos artistas que é dado a conhecer ao público, quer com a ideia prévia de o explicitar. Neste quadro, o virtuosismo será entendido apenas como modo de garantir a prossecução dessa(s) ideias(s), como garantia da clareza da sua chegada ao público. A segunda possibilidade dita que é na própria concretização da peça – no lugar em que ideia e matéria se fundem – que reside o seu significado. Assim sendo, o virtuosismo é, em si mesmo, um dado significante. É como se tivéssemos de escolher entre Joseph Kosuth e Mel Bochner. Pode optar-se pelos dois e defender que é nessa ambiguidade que reside o interesse do jogo proposto pelo espetáculo, mas eu inclino-me para a segunda possibilidade e, nesse caso, Bochner ganha a Kosuth.
*Arquiteto, cenógrafo. Professor na Escola de Arquitetura da Universidade do Minho, investigador no Lab2PT. Codiretor artístico da mala voadora.
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1+2 Junho 2016
Teatro Nacional São João