Woyzeck de COR

MARTA BERNARDES*

Vou escrever de cor. Que é como se escreve quando se escreve sobre o que fica no CORpo, que fica no CORação. Vou escrever-vos inexactamente, ou seja, com verdade e com rigor.

Como uma anamnese a partir da memória de um impacto, de rastos emocionais e imagens, como se desvendasse para mim mesma um sonho. Porque o que me ficou deste espectáculo foi exactamente isto: um impacto. E não é isto que acontece quando uma experiência nos perpassa? Não nos recordamos dos acontecimentos mas sim do ter acontecido?

Ter 20 anos e sair da sala de teatro com a sensação de que se atravessou um pesadelo, belíssimo e febril, que se assistiu ao desfile de hieróglifos andantes e corpóreos, mistérios que deliram em duas pernas, que se agitam, que se submetem, que ordenam, que conspiram, que alucinam, que amam, que são vis e são vilipendiados, que são crime e criminosos. Assistir perplexa a uma mistura de cirúrgica higiene da técnica e de potência vital dos corpos, uma gélida escalpelização do mal e uma quase expressionista construção das imagens, dos tempos, dos diálogos.

E perguntar: quem é este homem? e este? e esta mulher? e esta? e estes, porque aceitam isto? e que cavalo é este que relincha, alucinado, que não pára rente ao abismo, como o de Ângelo de Lima, em douda correria?

Quem são estes actores?

E sentir que fui eu quem foi transformada em câmara de ecos, em caixa negra de chão ondulado, onde o pacto de suspensão de realidade não chega para não achar que Woyzeck é o mais real dos homens reais, que o seu crime é ser pobre e homem e ter fome de comer e de amar, que a sua vítima é o fruto do seu crime inicial. E nada disto ter ainda assim explicação.

Eu transformada em Câmara de Ecos, aos 20 anos.

Eu ainda hoje a ecoar.

Só me apetece dizer: obrigada, António Fonseca, António Júlio, Catarina Requeijo, Cátia Pinheiro, Daniel Pinto (que saudades de te ver em palco, Daniel), Hugo Torres, João Melo, Luís Araújo, Miguel Rosas, Patrícia Brandão (que é feito de ti, camarada, que és uma actriz tão grande, como é possível que te deixem fugir?), Paulo Moura Lopes e Tónan Quito.

*Artista.

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4-27 Março 2005
Teatro Nacional São João

Woyzeck

de Georg Büchner
encenação Nuno Cardoso
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna