Fui ver Casas Pardas com a grande expectativa que acompanha sempre uma ida ao teatro. Arte por excelência, universal das artes, a mais antiga das artes, coloca todos os problemas metafísicos e resolve-os pelo conhecimento prático, pela evidência imediata dos sentidos.
Por exemplo, a magna questão da identidade. Quem sou eu? Que sabemos irresolúvel, primeiro porque não conseguimos ver-nos a nós próprios com distância real e suficiente, e depois porque, afinal, estamos a mudar constantemente. Mas, no teatro, no grande teatro, vemos a arte dos actores, capazes de levantar personagens perante nós sem qualquer ilusionismo, só pelo poder de metamorfose a que chamamos teatro. E toda a personagem é uma identidade nítida, forte, sem inibições de comunidade nem limites de bom comportamento.
No programa de sala de Casas Pardas estão (belas) fotografias de actores que têm a característica curiosa de parecer um fresco de exemplos do humano. A beleza física que existe não é determinante da observação. As estaturas, a estranheza das singularidades, os semblantes em pose mostram aquilo que nos actores e na sua arte os torna representadores do sagrado. Fazem com que a soberania, a velha aspiração a uma vida harmoniosa, o grande estilo, sejam realidades observáveis, como se pudesse existir um espaço em que a dificuldade de viver e a falta de sentido não existissem, isto é, um espaço de perfeito domínio e conhecimento de si, uma coincidência triunfal do corpo com as palavras.
Suponho que só é possível esta sensação de quem vê fotografias apenas porque há por detrás uma memória do espectáculo Casas Pardas. O grande teatro operou nele a arte mágica que torna o mundo compreensível, e que sempre provoca a alegria que nos cura. A catarse de que fala Aristóteles é um resultado precioso da experiência do teatro, como do cinema ou da literatura, que são artes da refundação do sentido.
Na minha memória profunda, aquela a que não se tem acesso, é possível que todo o espectáculo esteja gravado, mas na memória que me resta há todo um envolvimento de pormenores e escolha de aspectos que têm a ver com acaso. Aquilo de que nos lembramos é uma construção nossa, sem dúvida mais do que uma ruína, que seria ainda um resto do que aconteceu. Mas depois descemos a um outro plano em que é já o afecto que ensina a verdade, e é nesse plano que sei, por exemplo, que era um grande espectáculo, e porquê: juntava uma escrita tão singular como a de Maria Velho da Costa – apoteose e vertigem da narrativa moderna, com Jorge de Sena, Agustina, Nuno Bragança e poucos mais – a uma escola de teatro de exigência exemplar.
Além, ou lá por dentro do afecto memorial, está também a luz. Que neste caso era opalescente, como se estivesse saturada de memória, e metafórica, como se quisesse indicar aquele tempo obscuro de opressão que trazia consigo. Havia jogos que implicavam mudanças bruscas, zonas que apareciam iluminadas fortemente e depois se dissolviam na luz difícil que desenhava uma cena dramática. Porque a luz era uma personagem, e das mais fortes, em Casas Pardas.
Quer dizer: nem dentro nem fora, naquele meio-interior meio-exterior que é um quintal ou um jardim, as personagens evoluíam num regime de nenhuma tensão naturalista, mas também sem nada de feérico. Poderia dizer-se também um espaço com dois planos, parecido com o das palavras, que existem no campo da imaginação ao mesmo tempo que têm formas materiais. Mas, talvez melhor, o espaço que o teatro encontrara, com os movimentos e os focos de luz que lhe davam existência, era sobretudo interessante como um trabalho de arqueólogo, em que os assentos e fragmentos são analisados como caminhos para a descoberta de uma habitação natural. Assim, aquele palco era o lugar onde o romance podia enfim nascer, pois operava a conjugação das palavras e da energia que é propiciadora do nascimento de um mundo.
Pois o teatro é onde a realidade nasce. Imprescindível à vida, como o oxigénio à cidade. Ao cuidado de quem sofre como nós, cada vez mais, de pouca realidade.
*Escritor, professor.
_
6-23 Dezembro 2012 Teatro Nacional São João