Costumo dizer que Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, da Joana Craveiro e do Teatro do Vestido, é o mais importante espectáculo do teatro português dos últimos 10 anos, e provavelmente a mais marcante obra dos criadores e criadoras da minha geração. Programei-o no FITEI de 2015, como o espectáculo-epicentro de uma curadoria que pretendia lançar um olhar crítico sobre a criação contemporânea dos artistas nascidos em Portugal nos anos 70 do século XX, comummente identificados como os “filhos da revolução”.
Recordo-me da bancada montada em cima do palco do Teatro Nacional São João, cheia, e do entusiasmo e nervoso miudinho dos espectadores, pois íamos começar a assistir a um acontecimento que durava mais de cinco horas, com jantar pelo meio (pataniscas com arroz de feijão). Causa sempre perplexidade ver uma sala cheia para assistir a cinco horas de teatro. O que eu não esperava era que o público permanecesse na sala perto de duas horas, já depois do final da obra, à conversa com a Joana Craveiro e o Manuel Loff (esta conversa final é uma exigência da artista, mas percebe-se rapidamente que é uma necessidade de quem assiste à função).
As histórias que a Joana vai contando durante este Museu são as nossas, as dos nossos pais e avós, são de pessoas que estão na plateia ou dos seus amigos, maridos, namorados. O seu exercício rigoroso, fruto de um trabalho de quatro anos, e afectuoso, vai-nos levando, pela sua colecção de depoimentos, livros e discos, expandindo o teatro para fora daquela sala, fazendo-o ressoar no tempo e no espaço, construindo e reconstruindo a nossa história, descobrindo-a e revelando-a, num processo que acaba por ser do comum e do presente. A Joana é parcial, mas atenta ao pormenor, séria na pesquisa, comprometida com o humano, actriz/cientista louca: dominando os tempos de representação e o próprio ritmo do espectáculo, domina também o conteúdo. Ela é uma das mestres, a nível mundial, daquilo que se tem vindo a designar por teatro documental.
Este espectáculo dá-nos a perceber que os vários caminhos que os artistas encontram para se exprimir em cena são possíveis, e que uma obra de teatro documental pode ter interesse, para além da moda em que o género se tornou, com os seus diversos e questionáveis sucedâneos. Quando uma obra teatral é boa, mesmo boa, não importa o género. E para que ela seja boa é necessário este nível de comprometimento e qualidade técnica que a Joana mostra nesta obra. São necessários rigor, amor ao teatro e à palavra, nenhuma concessão no que respeita aos conteúdos transmitidos, fidelidade à proposta, unidade plástica, sensibilidade e percepção do tempo em que o autor vive; não para se servir dele, mas para o servir, e por isso transportando mais a dúvida do que a certeza.
Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas é uma obra intemporal, como as de Shakespeare (se quisermos: é sobre os nossos “reis”!), capaz de ser entendida por qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, tais são os pontos de contacto com a história contemporânea de muitos países. A performance notável da Joana Craveiro é também um factor de empatia que entusiasma mesmo quem não fala português, como aconteceu com uma crítica sueca e outra inglesa que assistiram ao espectáculo no FITEI de 2015. As diversas distinções que tem recebido provam-no e o facto de em 2020 ainda ser representado, e ter circulação internacional, também. Além disso, é um espectáculo que pode ser enxertado, pois a documentação que o Teatro do Vestido possui é imensa. Estamos perante uma obra-vida-viva, por isso esta minha rendição a uma das grandes criadoras do nosso tempo e à sua equipa.
*Encenador, ator. Director artístico do Teatro Experimental do Porto e do FITEI.
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11 Junho 2015
Teatro Nacional São João