Uma plateia de um. Um, dois, três, quatro… Começava assim uma das cenas do Porto Monocromático, excruciante para a actriz e para o público que assistia. O objectivo era fazer sentir o tempo, dar ao aborrecimento uma medida, logo a seguir a uma cena frenética em que os actores cruzavam o palco em supostas conversas de telemóvel, rasgões verbais que supunham denunciar a invasividade da tecnologia, do empreendedorismo, ou a simples futilidade da privacidade, partilhada por meios de comunicação que a tornam banal.
11, 12, 13… Poderá parecer pedante ou egocêntrica a escolha de um espectáculo em que tomei parte como co-criador para figurar nestes 100 depoimentos que, de alguma forma, perfazem a quadratura do círculo destes 28 anos de actividade do São João. Se houve muitos dos seus espectáculos que me marcaram, só dois deles, de facto, me mudaram profundamente a vida. Do segundo, a história não cabe numa página, e certamente não nesta página. Este Porto Monocromático destaca-se pela circunstância de provavelmente eu ter sido o único espectador que, de facto, lhe prestou atenção. Embora irritado na altura, e de cada vez que o revejo, foi o espectáculo mais importante da minha vida. Porto Monocromático foi um estrondoso fracasso, um tonitruante trambolhão em directo, com direito a uma parangona crítica (“Caos Policromático”) e ao espanto atónito de uma plateia desanimada e sofrida após três horas de bizarria. Acima de tudo, foi uma ruptura com os meus colegas co-criadores.
23, 24, 25… Porto Monocromático era como uma sopa de pedra, uma incrível amálgama de citações, extrapolações, fotos roubadas à secção de teatro da antiga livraria Leitura, vídeos da Pina Bausch visionados saltando frames, ou livros a citar Strehler. Tudo era colado à força de voluntarismo, de infindáveis discussões e de muita inocência ou perversidade, dependendo das memórias de quem conta a história do Porto Monocromático.
36, 37, 38… No palco do São João, o espectáculo desenrolava-se descosido, era a minha tentativa de uma gesamtkunstwerk. Acima de tudo, era um exercício com toda a maquinaria de cena, toda a profundidade e largura de um palco, sem compreender que, num teatro, a parte mais importante é a plateia.
46, 47, 48… Todos os anos retorno à cassete VHS do Porto Monocromático. Como espectador, foi uma lição imensa sobre o tempo, a humildade, a imperceptibilidade, a incapacidade de as melhores intenções ultrapassarem a quarta parede e chegarem ao âmago dos olhos, dos ouvidos e do peito de quem está sentado do outro lado. Foi uma lição sobre a necessidade absoluta de permeabilidade dessa parede. Portanto, como espectador, Porto Monocromático foi o pior espectáculo a que assisti, mas foi o melhor em que alguma vez pus a mão.
53, 54, 55… Nos anos 90, não havia escolas nem mestres, não havia grande coisa no Porto. Havia, sim, espaços, liberdade, possibilidade de imaginar. Isso permitiu-nos, a mim e a todos os meus colegas, ir fazendo e aprendendo. Porto Monocromático não passou disso, um livro em branco, um caderno da Firmo, como os que ainda hoje uso, onde fui aprendendo a estar em palco e a perceber que não se faz outra coisa senão o que outros já fizeram, mas de outra maneira, com outro coração, outros olhos e ouvidos, sempre para o mesmo interlocutor: o público.
65, 66, 67… No final de uma apresentação do Porto Monocromático, um dos meus melhores amigos, sem saber o que me dizer, comentou: “Tens uma profunda compreensão sobre a passagem do tempo.” Fiquei todo orgulhoso. Hoje, rio-me da sua sagacidade, porque se esquivou a apontar-me a inanidade do que eu fizera. Fosse por respeito aos meus colegas, ou por espanto ou aborrecimento, nada mais tinha a dizer.
71, 72, 73… Mas havia alguma coisa a dizer naquele espectáculo. Havia tudo o que tenho dito nestes 23 anos posteriores, porque nunca de lá saí. Ali me confrontei com a incomunicabilidade, o silêncio, o amor, o desejo, a tristeza, a irascibilidade, a tortura; e com o divórcio entre o eu e o eu outro, que só muito mais tarde percebi. Ali comecei todos os meus espectáculos. Por isso é que, ainda hoje, antes de começar novo espectáculo, compro um caderno da Firmo.
80, 81, 82… Porto Monocromático é, à minha maneira, a memória de um Porto que o tempo já esqueceu, um tempo de criação e fertilidade que viu nascer o Teatro Nacional São João, bem a meio desses anos 90, em que as companhias independentes cresciam como ervas daninhas e em que era mais fácil e inocente sermos criadores. Um tempo cuja actividade cunhou o Porto como cidade emergente e que pariu a Porto 2001, e que estranhamente só é lembrado quando outros tempos se defendem. Porto Monocromático é talvez o filho corcunda desse tempo, um Ricardo III mudo, porque não tinha nem a verve nem o desplante dessa personagem, e sobretudo não teve o seu fim, não desapareceu a pedir um cavalo, o meu reino por um cavalo, simplesmente feneceu de mansinho, quando a actriz chegou ao número 97, ano em que foi feito.
*Encenador, ator. Diretor artístico do Teatro Nacional São João.
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9-11 Maio 1997
Teatro Nacional São João