Lembro-me das laranjas resvalando no dom duardos e de pensar que este nome “portugal” a carimbar-nos os olhos talvez exprima a figura do precipício ao mesmo tempo que a do fruto. Lembro-me do candelabro colossalmente central da salvação de veneza, da roupa-mapa do calderón, de lamentar o perdermos involuntariamente a luz que temos. E, quando isso me atravessa, encolho-me e recolho-me, repesco com corda de recordar muito mais antigas reminiscências de um teatro nacional são joão ainda não renovado, correntes de ar e pó a varrer o palco aquando dos concertos de música de câmara, cadeiras de pau, mas o pai dava-me uma mão e o som dava-me a outra. Lembro-me do portão lacrimejante e dos cavalos de arções de nekrosius, de ter contido lágrimas em othello e de ter chorado baba e ranho no final das três irmãs, porque confusamente creio na transmutação do sofrimento em alegria. Lembro-me das cabeleiras na bela versão da ópera de britten, de penar com as alunas ionescas e às pintas e de jubilar com os supetões do misantropo e os escorregões do platónov, com o negrume do despertar da primavera e com a ofegância do woyzeck, sob a batuta do nuno cardoso. De curtir também larguete com a sua reposição do subterrâneo que se lhe colou à pele, no espaço burocrático-barroco do salão dito nobre. Lembro-me do prazer de estar dentro e fora do jogo da cartografia da pele e nunca mais me largou a ideia de que o deboche de alterar mapas é um bom princípio para mudar mundos. Lembro-me da justeza sem contrafacção do espectáculo i don’t belong here, obrigada, dinarte branco, joão da ponte, paulo abreu. Lembro-me de sair para a rua zangada com as leituras pedantes de gonçalo waddington e de tiago rodrigues, albertine e bovary pela rama, felizmente há mais marés que marinheiros, caraças… Lembro-me de pensar que os deschamps fazem um teatro que equivale à perda do olfacto mas com muito tacto tique e taque. Lembro-me de me comover por trazerem o ruy belo ao palco, pesem embora alguns desajustes. Lembro-me de me escangalhar a rir com je t’appelle de paris e recentragens afins. Lembro-me de me divertir com a rigorosa esopaida da cornucópia. Lembro-me dos corvos de nadj, do breve sumário de carinhas. Lembro-me das breves conversas no lobby com paulo eduardo carvalho. Lembro-me de ter experimentado o estranho ensimesmamento do estar em cena com la ribot. Não me lembro de tudo. Vi pouco de muito. O mais das vezes, ao chegar ao teatro, cruzo-me com dois imensos espíritos do lugar: o fernando camecelha, a luísa corte-real. E sim, volto e volto. Estou de luto pela minha vida, por exemplo.
*Escritora, realizadora.
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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna