Sans, de Martine Pisani, apresentada no Teatro Campo Alegre, em 2003, foi o primeiro trabalho que vi desta coreógrafa, cujo percurso acompanho desde então e que continua a ser para mim uma referência forte, uma das peças que mais me marcaram enquanto público de dança contemporânea. Apesar de já ter sido há muito tempo, faço aqui este exercício de tentar lembrar-me da peça, das imagens que me foram passando pela cabeça, das associações e leituras que fui experimentando enquanto a acção se desenrolava.
Lembro-me de que o palco estava vazio e de que o ambiente era silencioso, a dança era caótica e multifacetada, feita de intenções falhadas, de desentendimentos, de expectativas frustradas, de uma tensão permanente entre três intérpretes masculinos. Uma das primeiras coisas que era possível observar era uma espécie de economia de meios: um espaço teatral despido, a iluminação remetia para uma situação de ensaio (luz de trabalho, como se costuma dizer), os figurinos evocavam uma ideia de roupa funcional, quotidiana, não havia música em cena, não havia uníssonos ou adereços, todo o universo do trabalho indicava a criação de um território privilegiado para a observação da acção, para a revelação da materialidade de cada gesto e para o desenrolar de uma intrincada teia de relações que se iam estabelecendo entre os bailarinos. A peça sugeria-me um rigor impressionante na sua construção, uma grande coerência do trabalho coreográfico, alimentada por um trabalho seguro e generoso de interpretação.
Não consigo lembrar-me exactamente dos gestos e das situações, mas lembro-me de que a coreografia era composta por curtas sequências de movimento que iam sendo desconstruídas e reinterpretadas, instalando o absurdo e a impossibilidade na comunicação entre as figuras em cena. Lembro-me de que os comportamentos dos intérpretes eram às vezes erráticos, oscilavam entre a informalidade e a estranheza, gerando momentos de humor que derivavam de impossibilidades físicas e de jogos com o sentido das ações que cada um ia propondo aos outros. Toda a duração da performance era permeada por uma noção de jogo, talvez entre o verdadeiro e o falso, ou entre a presença e a representação, como se nenhuma ação pudesse refugiar-se num lugar seguro ou nenhum gesto pudesse ter um sentido unívoco. Tudo estava constantemente em jogo, em processo, era como se fosse preciso voltar a tomar posição e hesitar outra vez a cada passo dado. Mesmo com o avançar do tempo, as situações que pareciam já ter sido resolvidas voltavam a ser problematizadas, as imagens que pareciam já pertencer ao passado voltavam a aparecer, tudo era colocado permanentemente em questão.
Ao mesmo tempo, existia em cena uma espécie de vertigem do vazio, uma sensação de falta de propósito, de razão, como se fosse possível que a qualquer momento tudo pudesse simplesmente deixar de existir, subitamente. Tudo isso gerava uma cumplicidade com o público, as figuras em cena interrogavam-nos dentro da sua própria fragilidade mas, ao mesmo tempo, espelhavam-se na nossa fragilidade de observadores observados. Havia uma ideia de dramaturgia que resistia à linearidade, introduzindo constantemente diferentes tipos de ruptura no desenvolvimento da acção e diferentes tipos de transição que transformavam o sentido aparente das coisas, voltando sempre a abrir diferentes hipóteses de resolução para cada nova situação. A peça ia criando uma complexidade que emergia de desdobramentos imprevistos, colocando as certezas em suspensão e criando múltiplos ecos. No fundo, parecia um infinito jogo de ressonâncias entre o dizível e o indizível, entre um e outro, entre o agora e o momento seguinte.
*Coreógrafo.
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11+12 Julho 2003
Teatro Campo Alegre