Foram tantos, tão diversos e estimulantes os espetáculos memoráveis a que tive o grato prazer de assistir nos palcos do universo Teatro Nacional São João, que se tornou quase doloroso ter de optar apenas por um deles para um exercício de memória escrito em breves linhas. Acabei por optar por O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, a última encenação de Ricardo Pais enquanto diretor artístico desta magnífica Casa, que ele transformou, após dois períodos alternados de “gestão” de cinco e sete anos, num teatro nacional de referência a nível internacional. No fecho deste virtuoso ciclo a dois tempos, e no preciso momento em que o poder político pedia que se fizesse “mais com menos” quando já se fazia tanto com tão pouco, subia a cena uma história de intrigas, numa sociedade onde ódios se misturam com relações comerciais intrincadas, revelando a má aceitação de uma classe incompreendida e malquista…
Num imaginativo cenário de Pedro Tudela, composto por uma “floresta” de escoras de ferro oxidado pela passagem do tempo, uma negra parede “Casa-Tribunal-Espelho” e um claro-escuro-brilhante-chão-puzzle “Belmonte-Veneza”, recortado pelas cores vivas dos belíssimos figurinos de Bernardo Monteiro, sucediam-se as mais inspiradas contracenas, apoiadas em articulações produtivas entre o corpo e o espaço, a voz e o som, a palavra e as suas diversas formas de reverberação, superiormente iluminadas por uma paleta de ambientes e atmosferas criados pela sensibilidade de Nuno Meira e discretamente amplificadas e soberbamente tratadas sonoramente pelo talento de Francisco Leal, tendo por base temas musicais de Vítor Rua. Nestas luminosas paisagens plásticas e sonoras, os atores recriavam as imagens e as palavras de Shakespeare numa magnífica tradução de Daniel Jonas.
Albano Jerónimo, António Durães, João Castro, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Luís Araújo, Micaela Cardoso, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias, Sara Carinhas, Pedro Jorge Ribeiro e Pedro Manana formaram o conjunto de atores escolhidos para esta maravilhosa incursão pelo universo shakespeariano, guiada pelo talento único de um dos mais imaginativos, lúcidos e sensíveis criadores teatrais europeus. E, neste espetáculo, Ricardo Pais não foi “apenas” encenador, sendo também responsável, em parceria com o tradutor Daniel Jonas, por uma versão livre da peça, que assenta na concentração na primeira parte de todas as cenas centradas no vínculo contratual entre o Mercador e o Judeu, ocorridas em Veneza, ao mesmo tempo que remete para a segunda parte as cenas que têm lugar em Belmonte, em torno de Pórcia, do jogo dos cofres e da sua história de amor com Bassânio.
A concentração das cenas de Veneza e Belmonte em duas partes distintas, que reordena radicalmente a sequência dramática original, acaba por identificar claramente dois estilos literários distintos e quase opostos, ao mesmo tempo que acentua a densidade dos vários dramas presentes nesta obra de Shakespeare. Na verdade, ao afastar-se, em termos de organização, do guião original, o espetáculo permite-nos leituras particulares das personalidades de cada uma das diversas personagens e das suas relações com as demais, o que acaba por causar um grande impacto na compreensão da peça e das múltiplas peças que a compõem. Isto sem nos desligar nunca do “drama maior”, que opõe António e Shylock (Mercador e Judeu), mostrando ambos de forma crua e denunciando a obscura hipocrisia da fé cristã e a impiedosa crueldade da finança especulativa, que distorce mercados e sonhos.
Ainda hoje recordo, como se a vivesse de novo, a cena do tribunal revivida na mente de António, com o seu corpo sobreposto ao de Shylock, uma imagem que simboliza todas as formas de pressão de todos os poderes sobre os que deles dependem, sem pudor ou razão…
*Gestor, produtor cultural.
_
7-23 Novembro 2008
Teatro Nacional São João