Ao sexto dia do mês de Janeiro do ano de 2020, escrevo este texto, que poderia ser, acaso o pudor me não impedisse, uma carta de amor ao Teatro Nacional São João. É Dia de Reis, e aqui fica a memória de uma certa Noite de Reis.
Amigos, que país é este? A primeira fala de Violeta na peça não me ficou no ouvido, mas recupero-a agora para fazer uma substituição simples: Amigos, que teatro é este?
Estudante na Faculdade de Letras, fui, como convinha, “ver um Shakespeare”, embora nessa altura dissesse mais provavelmente que ia “ver a Noite de Reis, de Shakespeare, ao São João”. Também poderia ter dito “vou ao teatro”, porque no Porto, antes de 2001, não havia muito que enganar, não havia muito teatro. No fim, quando saí para a Praça da Batalha, o que tinha acabado de ver não era só a encenação de Ricardo Pais, fantasiosa, ardilosa, hábil, finíssima no arrojo e no bom gosto: eu tinha acabado de ver teatro, e logo me apaixonei. Como qualquer enamorado, acreditei que dali em diante tudo seria possível, e deixei-me submergir no enlevo de ter presenciado pela primeira vez todos os extraordinários efeitos da arte no palco.
É uma heresia, bem sei, mas na fala inicial de Violeta farei ainda uma outra substituição, de espécie diferente: Amigos, quem somos nós? Acontece que este texto, como comecei por dizer, tem um destinatário. É um texto para o Teatro São João, e por isso o seu interesse seria ainda mais diminuto se eu fingisse que me lembro bem do espectáculo. Não: lembro-me da actriz que fazia a Violeta (Micaela Cardoso), lembro-me do seu irmão gémeo (Nuno M Cardoso), lembro-me dos figurinos, lembro-me de alguns elementos do cenário. Lembro-me mal, e penitencio-me, de João Reis (embora recorde o seu extraordinário Festa), António Durães, Lígia Roque, António Feio, Miguel Guilherme. Lembro-me talvez do que me comoveu e do que me deleitou, como se fossem impressões da memória projectadas no futuro. E assim regresso, a medo, a uma condição infelizmente perdida: a do espectador-esponja, ou espectador-deslumbrado, ou espectador-iludido, ou espectador-frágil. Conhecia mal o nome Ricardo Pais (e desconhecia que este era o seu primeiro Shakespeare), não sabia quem era António M. Feijó (que anos mais tarde veio a orientar, noutra cidade e noutra vida, um projecto académico meu), não fazia o irritante exercício de hoje, em que vejo antecipadamente a ficha técnica de tudo e passo os primeiros minutos de uma récita a atribuir o nome do actor à sua personagem, num jogo sem interesse. Não sabia nada, e isso era maravilhoso: a época em que eu entrava no São João à espera de viver uma fantasia, e entrava na sala principal como quem entra num mundo onde o Porto não tinha ainda lugar, nem eu nele. Este texto não deixa de ser, então, um exercício de nostalgia, por isso perigoso, delico-doce. O que era o São João naquela Noite de Reis? Quem éramos nós?
Penso agora que o teatro é muitas vezes o que nos fica no ouvido: ainda hoje, às escuras, durante os espectáculos, escrevo em papéis avulsos deixas que acabaram de ser ditas pelos actores, quais magos. Palavras que não quero esquecer. Creio que não o fiz na Noite de Reis de Ricardo Pais, mas esta foi a peça que mais me ficou no ouvido da memória, porque foi um primeiro amor. Não guardo dela as imagens desfocadas que se dizem constituir a natureza do que recordamos. Guardo imagens muito claras. Por exemplo, a de uma Violeta que não chegou a envelhecer. Ao contrário de mim, que sou tão outra agora. Ao contrário do São João, que tanto se transformou e que continua, em estatura centenária, a comover-me. Ao contrário da cidade, que desde então deu o peito às balas de uma batalha inglória e se abriu ao mundo – a cidade de onde eu mesma fui embora. Essa Noite de Reis de há 21 anos foi a minha estreia epifânica no teatro: eu tinha 19 anos, não sabia nada, e ainda bem. Uma Noite que pode ser descrita como de enganos, ou como queiram. A minha memória dela será certamente o engano maior, e sobre esse tempo melhor diria que não mais se repetiu, talvez até nunca tenha existido. O que tenho é pouco/ Convosco repartirei o que comigo trago: parte dessa matéria transportável e partilhável compôs-se no Teatro Nacional São João, que agora celebra 100 anos e a quem dedico o meu amor pelo teatro.
*Editora.
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8 Outubro – 7 Novembro 1998
Teatro Nacional São João