A sombra do rei-caçador

Tiago Bartolomeu Costa*

Ainda hoje Macbeth se diz Makbetas. Ainda hoje, quando me lembro do que possa representar a ideia de floresta que anda, são os barrotes de madeira suspensos por grossas cordas a balouçar no Teatro Carlos Alberto que recordo. Lembro-me de pouco mais. Do caldeirão invertido a que estavam amarradas as três bruxas, do carapuço coçado do rei enlouquecido, de um som que deveria ser uma língua, o lituano, mas ao qual nunca atribuí forma. E de sombras, muitas sombras. Talvez de uma plateia reduzida a metade, mas talvez isso seja de um outro espetáculo.

Mas ainda hoje, se há espetáculo que me formou enquanto espectador, se há memória que guardo como prazerosa dos tempos, e das vidas, que já levo de 20 anos cúmplices dos 80 que o Teatro São João já trazia, é este.

Podia lembrar-me, como o fiz, de todas as frases que ainda sei de cor de O Que Diz Molero, que Nuno Artur Silva, José Pedro Gomes e António Feio adaptaram do livro de Dinis Machado, e daquele jeito de deitar verbos em boca pequenina que o Zé Pedro tinha, para explicar ao Feio que, à deixa “as i-dí-ó-ssín-cra-zííí-as de Mu-lé-rú”, eu deveria fazer subir o periscópio do qual retiravam os óculos, os livros e o cachimbo, porque assim era a deixa para quem, nos bastidores, como eu, fazia a assistência de direção de cena. Houve outros espetáculos, como Arranha Céus, que Ricardo Pais encenou a partir do segundo texto para teatro de Jacinto Lucas Pires, e as placas de fibra de cimento que o João Mendes Ribeiro desenhara, e onde o João Reis procurava alcançar o céu para conquistar a Lígia Roque sem partir os ovos que estavam guardados na prateleira de vidro, eram tão pesadas que precisávamos de oito braços para as levantar. Ou mPalermu, de Emma Dante, sobre o qual escrevi a minha primeira crítica publicada, então no hoje utópico Duas Colunas. Ou O Avarento ou A Última Festa, com o qual o Teatro Praga se estreou numa verdadeira coprodução e a mim me calhou usar as roupas, e usar-me dos adereços para uma conferência numa sala confrangedora mas justamente vazia. 20 anos e uma só memória resume toda a experiência de assistente de direção de cena, crítico imberbe, conferencista, autor de textos para programas de sala (um espetáculo por direito próprio numa paisagem editorial faminta e agudizantemente ansiosa por tão dedicado e delicado labor), crítico de muitos espetáculos, espectador de tantos outros, torcida não tão secreta assim na passagem pela tutela… 20 anos a ouvir os machados a enterrarem-se nos barrotes de madeira, que balouçavam e faziam com que o rei percebesse que perderia o trono quando a floresta andasse.

Que mistério, que feitiço, que maldição assinada por Eimuntas Nekrosius não terá sido contrariada pelo tempo e a memória, pela inteligência e a singularidade, pelo labor e a coragem de reduzir a 16 páginas os versos, as lástimas, a raiva e a ambição, o sangue com sabor a derrota e a vitória pífia dos inimigos, para darem, como definição de teatro, machados a marcarem os passos de uma floresta que anda em barrotes de madeira suspensos por grossas cordas. Ele queria simplicidade. Procurava o essencial. Sem recusar uma leitura política pós-comunista (Ceausescu não havia morrido há 10 anos, por exemplo?), centrava-se na falha, na dobra, na perplexidade que só a cegueira legitima.

Nekrosius já havia estado, e depois voltou, ao São João, mas eu já lá não estava. Não havia chegado, ou nunca saí daquela floresta ou não precisei de mais para medir a metáfora do teatro enquanto espelho denunciador, culpado, envergonhado por ser tão exposto e revelar tanto. Na altura, não sabia que Polanski havia realizado um filme a partir da mesma peça, mas quando vi o filme percebi que era um diálogo, de sangue, culpa e terror, mesmo que ficcionado. Como não sabia que Kurosawa havia transformado o texto de Shakespeare numa peça de teatro nô e lhe havia chamado O Castelo da Aranha, para perceber que as raízes de que falava eram tão invisíveis quanto os fios que enredam os ambiciosos. Esse lado primitivo, cru, direto, essencial, esse lado animal, da sombra, onde a culpa não tem nem dono nem deus nem chefe, é um cão que ladra sem morder até a raiva tomar conta de tudo. Makbetas, o rei-sombra, o rei manchado, o rei marcado, o rei-árvore, rugas e ruínas e runas de uma história igual a todas e que o teatro ensinou a desmontar. E, por isso, medida de verosimilhança de todos os espetáculos que vi depois.

*Antigo crítico, editor.

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19+20 Dezembro 1999
Auditório Nacional Carlos Alberto

Makbetas

de William Shakespeare
encenação Eimuntas Nekrosius
coprodução Festival di Palermo sul Novecento, Teatro Biondo Stabile di Palermo, Meno Fortas, Fondazione Orestiadi di Gibellina, Aldo Miguel Grompone | Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna