Um príncipe incapaz

LÍGIA ROQUE*

Lembro-me muito pouco do espetáculo. É até assustador pôr-me a escrever sobre ele a partir de uma recordação tão vaga. E mesmo essa nem sequer sei se é totalmente verdadeira. Tenho uma impressão de sonho quando penso no Amleto que vi no Porto. Desde pequena que baralho o que vivi e o que sonhei, portanto, mais uma memória imprecisa não fará mal ao mundo. Nunca tinha ouvido falar no encenador e a decisão de ir foi quase tirada à sorte. O festival era variado e maravilhosamente tentador. Era interessante para mim a experiência de ser público no Teatro Nacional São João, raramente me acontecia nesses tempos de uma sala só.

A atmosfera era difusa no espaço da Alfândega, onde foi apresentado, e tenho a sensação de que tudo existia entre sombras de preto e branco. O Porto, de facto, no inverno nunca foi muito colorido. Havia uma improvisada bancada cheia de gente e umas janelas enormes que deviam dar para o rio. Nem sei se vi o rio e nem tenho a certeza se eram janelas. Um ator que se supunha ser Hamlet ia ocupando o espaço, meio homem/meio criança. E havia pelo menos um peluche que ele abraçava. Recordo-me de achar cómica a ligação entre o nome do ator e a sua interpretação: Paolo Tonti. Conhecia bem a peça de Shakespeare, e por isso podia entreter-me a observar a forma como a encenação se focava em aspetos menos glamorosos do Hamlet e o retratava como um miúdo mimado e infantil, um príncipe incapaz. Sempre achei desajustada a idade dos intérpretes (trintões, na melhor das hipóteses) do jovem Hamlet, um miúdo que na verdade nem sabia distinguir bem a mãe de todas as outras mulheres. Mas a verosimilhança neste espetáculo estava esticada a um nível desconhecido, até para mim, intimidante.

O ator, de repente, já nem me lembro porquê, ficou parado, com os braços abertos, em posição de cruz. E ficou e ficou e ficou. Na altura, nem pensei no esforço que seria para ele manter-se naquela posição. Estava arrebatada pelo excesso de tempo da ação ou da ausência dela: revi a impotência do Hamlet, sem conseguir tomar uma decisão, o peso dessa incapacidade. Como atriz, de movimento rápido e fala escorreita, nunca me tinha ocorrido experimentar tal coisa; no máximo, teria arrastado simbolicamente a ação uns segundos mais. Mas o ator, assim parado, como se fosse para sempre, como se um raio tivesse feito ricochete no escuro Douro e o tivesse cristalizado? Nunca tinha visto. E ele lá ia ficando, estoicamente, fixo em lugar nenhum.

Começaram a soar uns risos nervosos. Estranha banda sonora. Apercebi-me de que vinham da bancada. O público estava ainda menos habituado àquilo do que eu. Sobressaltados, não sabiam como se comportar. Dei por mim a olhar mais para o público do que para o ator. A luminosidade era parda, parecia que vinha das janelas e tenho a vaga sensação de que uniformizava ator e público. Faria eu parte da corte a assistir ao espetáculo organizado por Hamlet? Aqueles risos nervosos seriam confissões de culpa? Cada vez mais a plateia se inquietava. Comecei a desejar ardentemente que o ator não mais se mexesse, para eu poder intuir quem sairia primeiro, quem teria o mais espampanante ataque de nervos, quando ficaria a bancada vazia e Hamlet finalmente só, naquele palácio de pedra.

Não me recordo de como acabou o espetáculo, mas, quando saí, trouxe comigo um tempo novo, uma outra forma de arriscar as pausas paradas nas didascálias, um cristo teatral que me acompanha religiosamente desde então.

Nesse mesmo ano, a artista Gillian Wearing ganhou o Turner Prize com um vídeo intitulado Sixty Minutes Silence, em que um grupo de 26 polícias posava para ela durante uma hora. Queriam ficar quietos, bem-comportados, mas acabavam sempre por se desmanchar em ações muito pouco prováveis. Como a nossa plateia no Amleto. Coincidências? I think nothing, my Lord.

*Atriz, encenadora.

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20+21 Dezembro 1997
Alfândega Nova do Porto

Amleto

de Romeo Castellucci
a partir de Shakespeare e Saxo Grammaticus
encenação Romeo Castellucci
coprodução Socìetas Raffaello Sanzio, Wiener Festwochen, Teatro Comunale Bonci di Cesena | Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna