Reacção, combate, resistência

Cláudia Galhós*

Braços, pernas, cabeças, troncos, costas… partes do corpo atravessam as paredes do cenário, forradas de recortes de jornais. Tudo em redor é escuridão, da alma mas também da carne. Um breu do humano. Por via dessa visão inusitada do corpo, o real toca uma proximidade íntima, criminosa, com a ficção. Desmembramento. A dramaturgia é de incompletude, atentado à integridade, e nesse sentido é misteriosa e desejante. O espaço cénico tem a mesma carga compartimentada do corpo, é feito de pedaços, divide-se, desfaz-se, desloca-se, é posto em movimento no espaço, reconstitui-se e reformula constantemente a fissura. Cada um daqueles bailarinos representa uma dor própria do corpo e da alma da humanidade. Uma dor dos que estão atravessados, entre a vida e a morte, que atravessam as paredes do cenário construídas genialmente por João Mendes Ribeiro, a partir de uma ideia de Olga Roriz. Os corpos são, simultaneamente, potentes e despedaçados.

A Propriedade Privada de Olga Roriz é uma das primeiras “Sagrações da Primavera” que a coreógrafa tem vindo a compor ao longo do seu percurso artístico, muito antes de nomear as suas danças enquanto tais – fez uma primeira A Sagração da Primavera de grupo em 2010, e um solo por si dançado, que intitulou A Sagração da Primavera (solo) em 2013. A noção de sacrifício que trespassa esta obra é de uma ordem diferente, a de uma constante articulação eloquente do corpo, entre a vitimização e a insubmissão, em que o repetido desabar físico é gerador de reacção, de combate, de resistência. A qualidade do conflito permanente viaja por diferentes contextos e situações – do quotidiano, da intimidade relacional, da tensão sexual, mas também do sentido de comunidade, do estilhaçar do espaço comum, e mesmo de um grau de opressão mais alargado, político, engendrado como manifestação ponderada do mal, de que o genocídio é o seu expoente máximo. Algumas destas dimensões constam de um traço identitário da dança de Olga Roriz, mas aqui ganham uma potência maior, desoladora, poética, porque traz visões do Holocausto para o seu imaginário íntimo da dança contemporânea, numa década, os anos 90, onde a dança experimental andava mais preocupada consigo própria e a debater-se pelo direito à liberdade de expressão – ou seja, a discutir a sua eloquência, a sua própria forma artística, a sua linguagem, pondo em causa normas e academismos formais.

É uma peça de violência mas também de sedução. É aqui que, de uma forma mais declarada, Olga ousa levar mais longe um mundo que reconhecemos como seu: esses corpos profundamente humanos, profundamente femininos e/ou masculinos, profundamente em trânsito entre manifestações alteradas da personalidade e das exaltações dos seus ânimos, com um jogo de prazer e gozo na alternância da sua identidade de género. Coexistem aqui as várias escalas da vida, a da história privada e a da grande história, porque é preciso não esquecer. Há uma sequência onde um bailarino enuncia dados históricos, de mortos, enquanto se despe e se cobre de vermelho de sangue, até que o ouvimos dizer: “É preciso não esquecer.” O sonho e a inocência convivem, assim como nomes de personagens históricas que expandiram a imaginação, Salvador Dalí, Pablo Neruda, Einstein, Sartre, Matisse, Marcel Proust, Marinetti, Kandinski. A dança de Olga é habitada por muitos mundos. Não é simplesmente uma dramaturgia que combina elementos e influências aparentemente distantes, é mesmo um exercício de colisão, que traduz a vivência de uma realidade onde coexistem as Grandes Guerras, a destruição massiva da vida humana, e a capacidade de invenção sustentada pelo saber genial e pela imaginação, de que o cinema faz parte – e o cinema também tem estado fortemente presente na dança de Olga Roriz, por vias muito diversas. Propriedade Privada é uma peça histórica do repertório da dança portuguesa da viragem de século. Estreou-se em 1996, no Teatro São João, co-produzida por este, e com um programa de inspiração que ecoa a celebração dos 100 anos do cinema, entranhada de fantasmas do Holocausto. E, a par de tudo isto, ainda encontramos a substância do arrojo dos corpos, da vitalidade quase pornográfica das imagens que transpiram a violência, que também é a do quotidiano.

*Escritora, jornalista.

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26-28 Julho 1996
Teatro Nacional São João

Propriedade Privada

direção Olga Roriz
coprodução Olga Roriz Companhia de Dança, Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional São João | Ciclo Dancem!96

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna