Platónov sou eu mesmo

JORGE LOURAÇO FIGUEIRA*

Contra as regras do jogo, fui ver o que já tinha escrito sobre esta encenação. Não apenas as linhas publicadas por ocasião da estreia, mas também o rascunho do que saiu no jornal, quase o dobro das palavras no papel. Isto sem contar as entrelinhas, que são a maior parte do que se escreve. Em minha defesa, devo dizer que me revi no articulado, e mais ainda no que ficou por dizer.

A memória do espetáculo ainda me fere, devido à suspeita, inculcada na minha cabeça por um dos atores, amigo, de que o Platónov sou eu mesmo. Ou, pelo menos, sou mais um Platónov, um dos dissolutos, inconsequentes, incapazes. A ferida cicatriza com a lembrança da canção, um “Besame Mucho” cantarolado e assobiado infinito afora, lembrança que cura a dor no coração, mas não chega a sarar nunca a cicatriz, como se fosse uma espécie de tatuagem crua, em carne viva, a marca que fica de cada vez que me lembro dessa noite.

Sentado na plateia, sinto que, a partir de certo momento, o tempo vai abrandando, até parar estendido à nossa frente como um tapete. A sensação que tenho é que este é o lugar e a ocasião para tratar de um assunto até que possa ficar resolvido. Qual é o assunto? Não sei bem ao que venho. É como passar a noite no bloco operatório, rendido, até ser concluída a cirurgia de uma coisa mal compreendida, da qual só os físicos sabem os segredos. E o assunto – fico a saber depois – éramos cada um de nós. Não em conjunto, nada disso, mas cada um à vez, e só depois, talvez, como um todo. O retrato de uma geração – aquela nascida nos anos 70 – em que se vê não o destino coletivo, mas os fracassos de cada um. As derrotas individuais seriam mitigadas pelo coletivo de atores repetindo a canção.

O cenário era como um entroncamento de carris de várias montanhas-russas, que terminavam dando para o vazio, no ponto em que começava a plateia. O convite era para entrar na estação ferroviária pela própria linha, sem passar pelo largo da estação. O meu desejo era que as personagens viessem reconhecer a nossa presença naquela noite, e se dirigissem ao público, saudando a nossa chegada aos confins do mundo. Mas os atores continuavam como se não fosse nada com eles, quais médicos fazendo piadas entre si, debruçados sobre o corpo aberto do espectador solitário, ou adultos fingindo que ignoram as crianças para lhes dar a ver o mundo do lado de fora.

Isto foi antes da crise financeira, logo antes de o teatro em Portugal se ter dedicado a pensar os fracassos gerais da nação, como viria a fazer depois. É também uma peça inacabada, escrita anos antes de Tchékhov ter conseguido dar conta das contradições da sociedade russa. Não parece ter sido no palco do Teatro Nacional São João, a 18 de julho de 2008, mas num lugar feito de pura duração, largura, altura e comprimento, fora do aqui e agora. À distância, Platónov aboliu o tempo e expandiu o espaço. Depois da operação, levo o coração para casa num frasco. Trouxe-o agora para estas linhas, e fica aqui.

*Dramaturgo, encenador, professor de Dramaturgia na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo.

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17 Julho – 3 Agosto 2008
Teatro Nacional São João

Platónov

de Anton Tchékhov |
encenação Nuno Cardoso
produção Teatro Nacional São João

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1
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fotografia João Tuna