“Toco não importa com quem, desde que tenha talento.” Aos 85 anos, Stéphane Grappelli (1908-1997), um “monstro” do jazz europeu e mundial, podia fazer esta e outras afirmações ao recordar o seu percurso, ele que tinha começado com Django Reinhardt e depois tocado com outros nomes grandes, como Josephine Baker e Louis Armstrong, Oscar Peterson e McCoy Tyner, Martin Taylor e Jean-Luc Ponty, Philippe Catherine e Michel Petrucciani. E com outros clássicos, de outras músicas, como Yehudi Menuhin, Leonard Bernstein, Michel Legrand ou Yo-Yo Ma…
Em Novembro de 1993, Grappelli veio apresentar-se no Porto pela primeira vez, embora já tivesse tocado em Lisboa por diversas ocasiões, inclusivamente antes da Segunda Guerra Mundial. A sua actuação anterior em Portugal acontecera em 1988, no Festival de Jazz de Cascais. Mas, no Porto, o seu concerto da noite de 23 de Novembro seria uma estreia. E logo no belo palco do Teatro São João, transformado, no ano anterior, em Teatro Nacional.
Também para o jornal Público, nascido apenas três anos antes, era a primeira vez que podia noticiar a visita e a actuação do grande mestre do violino no jazz. Jornalista da secção de Cultura na redacção portuense do novo diário, foi-me confiada a “missão” de não só fazer a reportagem do concerto, mas também de entrevistar Grappelli.
O violinista francês vinha encerrar o ciclo Saudade e Melancolia, uma semana cultural promovida pelo Instituto Francês do Porto. Era mais um momento de excepção que este instituto, pela mão do seu programador, Bernard Despomadères, promovia na apagada cena cultural portuense desses anos 90, e que reuniu na cidade figuras como Agustina Bessa-Luís e Eduardo Lourenço, mas também o filósofo e psicanalista francês de origem marroquina Daniel Sibony.
Nesse Outono de 1993, o próprio Teatro Nacional São João passava por momentos de alguma controvérsia. Depois de seis meses a acolher a revista de Filipe La Féria Passa por Mim no Rossio, o Teatro Nacional portuense convidara a actriz brasileira Christiane Torloni e o encenador José Possi Neto para a produção de um espectáculo, 10 Elevado a Menos 43 – Extasis, cujo custo, próximo dos 30 mil contos (150 mil euros, hoje), foi visto pelo meio teatral como uma afronta, considerando as condições de trabalho que eram dadas às companhias portuguesas. Uma polémica que chegaria, de resto, à própria Assembleia da República, com o deputado Mário Tomé, da UDP, a questionar o então secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, sobre o tema.
Nada que interessasse, claro, a Stéphane Grappelli, que, quando chegou ao Porto, quis aproveitar o máximo de tempo para conhecer uma cidade que para si era nova, tendo inclusivamente adiado por um dia o seu regresso a casa.
Na tarde do concerto, o violinista, instalado no Grande Hotel da Batalha, aceitou dar uma entrevista exclusiva ao Público. Começou por não gostar de se ver interrompido no seu “chá das 5”, 10 minutos antes da hora combinada, e o seu mau-humor prolongou-se entrevista dentro, fazendo jus àquela situação tantas vezes verificada com os grandes músicos e artistas: “Olha para o que eu faço em palco, para a minha obra; não olhes para o que eu sou nos bastidores.”
Entre respostas telegráficas e a inquirição repetida aos conhecimentos musicais do jornalista, Grappelli confirmou essa faceta de ser tão genial no palco quanto pouco tratável fora dele. “Não se iluda. Nasci cansado num domingo, e tenho permanecido cansado toda a minha vida. Só desperto no palco; é o único lugar onde consigo tomar consciência do lugar onde estou”, esclareceu durante a entrevista em que acabaria por distender essa tensão e falar bem para lá do tempo disponível na cassete do gravador.
À noite, subiu ao palco do São João apenas acompanhado por Marc Fosset, na guitarra, e Jean-Philippe Viret, no contrabaixo. “Actualmente somos só três, e é suficiente; quando os músicos são bons, não é preciso ter muita gente”, justificara à tarde. Com a sua tradicional camisa havaiana em tons vermelhos, azuis e castanhos, uma energia maior do que a idade e a sonoridade delicada e inconfundível do seu violino, Grappelli “despertou” uma vez mais, e mostrou o lado solar da sua música, criando momentos de magia e de cúmplice afectividade com o público que praticamente lotava a sala.
“Não sei fazer outra coisa. Se não tivesse esta profissão, o show business, que é a mais bela profissão do mundo, não sei o que conseguiria fazer; os concertos são a única coisa que me desperta. Preparo-me para eles como para um sacerdócio”, tinha também dito ao Público.
Era verdade: Stéphane Grappelli era bem mais fascinante em palco do que fora dele. Mas, mesmo na vida real, e quando a isso se permitia, o seu sorriso era contagiante.
*Jornalista.
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23 Novembro 1993 Teatro Nacional São João