Na Primavera de 1996 era tudo novo no Teatro Nacional São João: o director artístico, a equipa técnica, o grupo de actores, o modus operandi. Eu tinha acabado de me juntar ao clã. Todos trabalhávamos estimulados, com o entusiasmo habitual de quem tenta criar algo próximo da perfeição; com meios, mas a partir do zero. Então com uma já longa e consagrada carreira como encenador (desde 1971), Ricardo Pais chegou ao Porto no princípio do ano e logo criou um autêntico torvelinho em torno desta “espécie de bombonnière plantada na Praça da Batalha”, como se referia, com graça, ao emblemático edifício do arquitecto Marques da Silva. Era uma súbita invasão lisboeta – e cosmopolita, chique, “pós-moderna” – ao muito familiar ambiente da cultura então praticada a Norte; e não foi propriamente bem recebida por todas as esferas da região. Muito oportuna e complementarmente, enquanto ia ultimando os preparativos deste Dom Duardos, estreou no Porto, a 22 de Março, com alguma pompa, Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, já uma co-produção do TNSJ com o Teatro da Cornucópia, encenada por Luis Miguel Cintra.
O novo TNSJ começava em português; e recuando à ancestralidade da nossa dramaturgia, com uma obra menos conhecida de Gil Vicente: Tragicomédia de Dom Duardos, originalmente escrita em castelhano. O autor ofereceu-a “ao jovem D. João III, no início do seu reinado, e representou-a então, decerto na Primavera de 1523 (ou do ano seguinte)”.1 A intriga, amorosa, tem todas as peripécias e equívocos das então muito em voga novelas de cavalaria, como constata Margarida Vieira Mendes: “Com Dom Duardos inaugura-se também a intenção e a consciência dum novo género de teatro escrito e representado por Gil Vicente: o das tragicomédias, isto é, funções aparatosas apresentadas em festas da corte e para agradar à família real, num estilo retórico e poético que quer brilhar; a matéria amorosa e muitas das acções provêm das novelas de cavalaria, com personagens de alta estirpe, sendo o príncipe D. João um aficionado dessas novelas.”2 Curiosamente, tanto estas “funções aparatosas”, “num estilo que quer brilhar”, como a Primavera da estreia original pareciam fazer parte do sofisticado programa de intenções do inquieto (e irrequieto) Ricardo Pais para seduzir os desconfiados nortenhos, nesta sua primeira incursão pelo Porto.
O seu “cartão-de-visita”, a 31 de Maio, foi, então, a estreia deste deslumbrante (e, desde logo, modelar, rigoroso, quase cinematográfico) espectáculo – fresco, colorido, estilizado, fetichista, multidisciplinar, luminoso, mediterrânico. Para a sua construção, convocou os seus mais próximos/regulares “criativos”: António Lagarto (cenografia), Nuno Carinhas (figurinos), António Emiliano (música original), Daniel Worm d’Assumpção (desenho de luz), Francisco Leal (sonoplastia) e Luís Madureira (canto e elocução). João Tuna fazia o primeiro de todos os trabalhos como fotógrafo de cena que tem assegurado para o TNSJ. O elenco, aqui inumerável, era surpreendente na sua mistura. Sempre atento a talentos emergentes, Ricardo Pais escolhe para o par protagonista um actor de Lisboa e uma actriz do Porto: João Reis e Micaela Cardoso. Os outros intérpretes, na maioria locais, cruzavam origens com quem veio de fora: Lígia Roque (Coimbra) e Alberto Magassela (Moçambique), que contracenava com a mítica Adelaide João (aqui em única colaboração com o encenador).
Estávamos no arranque do governo de António Guterres, antes das crises, entre a Lisboa 94 e o Porto 2001, capitais europeias da cultura, com a EXPO’98 pelo meio. Havia meios e novos talentos. O spot publicitário ficou a cargo de Edson Athayde. Para além de um cuidado programa, a tradução utilizada no espectáculo, de Mário Barradas e Margarida Vieira Mendes, foi também lançada na estreia, dando início a uma relação duradoura entre a Livros Cotovia e o TNSJ. Com realização de Carlos Assis, o espectáculo foi registado e editado em VHS. Tudo como devia ser sempre.
Finalmente, as laranjas. No momento em que a paixão surge entre Dom Duardos e Flérida, rebenta uma chuva de laranjas (de plástico), que caem da teia e invadem o palco, saltando até para a plateia. Esta imagem fazia parte do conceito de promoção do espectáculo desde o início. Ainda antes de começar sequer os ensaios, Ricardo Pais chegou à primeira reunião com o designer João Nunes e logo expôs a sua ideia para o cartaz: laranjas a boiar na água. Como ainda não havia praticamente internet, nem bancos de imagens, lá foi o Pedro Lobo rumo a casa de uns amigos que tinham piscina, com um saco enorme cheio daquelas laranjas artificiais que seriam depois usadas em palco, fazer as suas fotografias… O rigor/perfeccionismo de Pais chega aqui: a imagem genérica de cada espectáculo por si encenado nunca precisa de ser inventada; ele sabe sempre qual irá ser.
1 Margarida Vieira Mendes – “Apresentação de Dom Duardos”, in Tragicomédia de Dom Duardos. Lisboa: Cotovia/TNSJ, 1996, p. 11.
2 Idem, ibidem.
*Jornalista. Responsável pela assessoria de imprensa e pelo departamento de Edições do TNSJ (1996-99).
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31 Maio – 30 Junho 1996
Teatro Nacional São João