Sobre manteiga…

ANA CRISTINA VICENTE*

Em 2003, o Teatro Nacional São João apostava, pela primeira vez, num Festival de Live Art, o brrr. Para Rita Castro Neves, a programadora, era importante que o brrr saísse do edifício convencional do Teatro e acontecesse em espaços inusitados, de maior proximidade com o espectador e que potenciassem a intensidade das performances. Aconteceu durante três dias na Praça da Batalha e em locais próximos, como a pensão restaurante Mondariz, a Igreja de Santa Clara, a Capela da, então, Universidade Moderna, a pala do Cinema Batalha ou o popular café Chave d’Ouro.

Nessa tarde de fim de Junho de 2013, a remodelada Praça da Batalha efervescia de pessoas: os transeuntes habituais e também muitas pessoas que ali se tinham deslocado para assistir ao último dia de performances do brrr.

A performance de Melati Suryodarmo estava anunciada para o pequeníssimo e antigo café Chave d’Ouro (1920). Este fez parte de um conjunto de cafés da Baixa portuense que durante grande parte do século XX foram importantes locais de encontro e tertúlia. Os locais onde se discutiam política, revolução, arte e literatura. Entrámos pelo rés-do-chão, o café propriamente dito, e, por umas escadas estreitas, subimos ao primeiro andar, para a antiga e desactivada sala de bilhar.

O espaço exíguo foi ficando cada vez mais pequeno conforme se foi enchendo de espectadores. Estava escuro, abafado, calorento. Um certo ambiente de bas-fond. Em frente a uma parede, uma área vazia onde, no centro, sobre um chão preto, estavam amontoados pequenos blocos de manteiga! Atrás, uma mulher de costas para nós, com um vestido preto, curto e justo, que fazia sobressair as suas formas femininas, cabelo preto, longo. Virou-se, subiu para os blocos de manteiga e começou a dançar. Fazia lembrar uma personagem de um peepshow. Estávamos muito perto. Dançava, escorregava, desequilibrava-se, caía. Levantava-se e continuava a dançar, a manteiga a derreter. Voltava a escorregar, a desequilibrar-se, a cair, a levantar-se. A cena foi-se repetindo, mas cada vez lhe era mais difícil recomeçar e continuar a dançar. Resiliente, parecia forçada a dançar, lembro-me de Os Sapatinhos Vermelhos, dançar sem parar, até à exaustão… Estava a ficar desalinhada, cansada, besuntada. Aquela dança insólita, que começou por ter alguma graça, tornou-se incomodativa, violenta, trágica… Continuava a dançar, a cair, a levantar-se, cada vez com mais esforço… Quando parecia que recomeçar seria quase impossível, parou, tirou os sapatos e saiu.

O programa do Festival, que agora reli, dizia que as performances da artista “reflectem sobre temas culturais, sociais e políticos”; que “Melati recorre a objectos específicos que simbolizam abstracções do seu pensamento conceptual, mas que para o público estão ligados a acções do quotidiano”; e que “os seus trabalhos não são o resultado de uma preparação exaustiva, constituindo-se antes como uma experiência arriscada”.

Em 2012, numa entrevista a Amanda Bethehem, Melati dizia que a peça tinha sido criada quando a sua vida andava “aos altos e baixos” (caía e levantava-se), num desses momentos em que as mudanças acontecem, em que decisão e resiliência são necessárias. A “exergia”, esse momento da termodinâmica que também pode ser definido pelo trabalho útil necessário para fazer um sistema sair do estado morto, estava presente neste processo.

Na altura, pareceu-me óbvio que aquela performance intensa reflectia sobre a ideia sexualizada do corpo feminino, sobre a condição da mulher, mas hoje talvez a leitura fosse menos subjectiva, mais unívoca: o vestido preto é o #metoo, a resiliência é no feminino, é uma performance feminista!

*Espectadora.

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29 Junho 2003 Café Chave d’Ouro

Exergie – Butter Dance

de Melati Suryodarmo
produção Teatro Nacional São João | brrr – Festival de Live Art

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna