Sua Majestade, Fernanda Alves

NICOLAU PAIS*

Em 1999, ensaiávamos Barcas de Gil Vicente com Giorgio Barberio Corsetti (que se tinha cruzado com Fernanda Alves dois anos antes em Os Gigantes da Montanha, de Pirandello), quando a notícia da sua súbita morte explicou, da forma mais devastadora que possam imaginar, a razão para o seu atraso nesse dia. Não quis o destino que o Gil Vicente que com ela ensaiávamos se viesse a juntar ao Padre António Vieira que, em Músicas para Vieira, dois anos antes, tinha representado.

Em Músicas para Vieira, Fernanda Alves unia oratória e retórica de forma sublime, assoberbando-nos, como só pelo Teatro se pode fazer. Na sua hierática irrepetível, justapondo a pompa e a circunstância à consciência aguda da vã glória disto tudo, Fernanda sobe uma escada enquanto diz “A terra mais ocidental de todas é a Lusitânia” (do “Sermão de Santo António”, de Vieira). Encenada ao som do piano quase romântico de Egberto Gismonti, o improvável Cisne Negro1 distribui fausto e autoridade, celebra a poética e a intimidade, fortalece-se, legitima-se, repudia qualquer ilustração ou rábula. Solene e insondável, sempre exposta com a coragem reservada aos grandes artistas, tudo era íntimo e dilacerante, tudo negava a autocelebração.

Segura do interminável catálogo de referências que soube sempre cultivar e partilhar, jamais mostrava uma réstia sequer da omnisciência autoritária com que os menos talentosos costumam impressionar os néscios; para Fernanda Alves – e isso ouvia-se quando ela estava em cena –, as palavras eram tudo, o princípio e o fim, o estímulo e a memória, o arcaico e o contemporâneo, enfim, o Drama.

Extinto que está o chamado paradigma europeu, e numa altura em que toda uma nova geração insiste em diminuir a autonomia dos textos, trucidando-os até que possa “achar” que os “dominou”, convém lembrar a lição que fica: a memória de cena perpetua-se pela consciência aguda e altamente civilizada da efemeridade disto tudo. O intérprete só sobrevive à obra quando e se esta for feita pela Palavra, mesmo quando em silêncio.

Para Fernanda Alves, isso era – vejam bem – da ordem do ético; Sua Majestade não mais saiu de Cena.

1 Uma imagem cuja génese os mais atentos à relação entre Fernanda Alves e o meu pai, Ricardo Pais, encenador do espectáculo em questão, não terão dificuldades em reportar a Anatol, de Arthur Schnitzler, estreado no Teatro Nacional D. Maria II em 1987; essa relação tem génese aí, com um texto de Hofmannsthal (trad. Vasco Graça Moura) dito por Fernanda por entre a peça de Schnitzler, atravessa Fausto. Fernando. Fragmentos. (1989, Fernando Pessoa/António S. Ribeiro) e sublima-se em Clamor (1994, Padre António Vieira/Luísa Costa Gomes), do qual derivou este Músicas para Vieira em 1997.

*Ex-ator, professor, músico.

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11+12 Dezembro 1997
Auditório Nacional Carlos Alberto

Egberto Gismonti – Músicas para Vieira

direção musical Egberto Gismonti
direção cénica Ricardo Pais
produção Teatro Nacional São João | Festival PoNTI

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in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

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fotografia João Tuna