Ofício das palavras e das noites de trevas sem fim

Miguel Loureiro*

A propósito do Breve Sumário da História de Deus de Gil Vicente, na encenação de Nuno Carinhas em 2009, surgiu a ideia de o pôr em diálogo com uma obra posterior do património literário universal, um irmão da Eneida ou mesmo da Ilíada, o Paraíso Perdido (1667) de John Milton, na peculiar tradução de Daniel Jonas. Digo peculiar por oferecer desafios e algumas dificuldades a quem tinha de a entender e pôr no corpo: os leitores. Sim, necessariamente uma leitura, pois 10 565 versos de uma epopeia não são pêra doce para quem se atrever a ir além disso; uma leitura no palco do Teatro Nacional São João, à frente do cenário de Nuno Carinhas para a peça de Gil Vicente. Uma maratona de cerca de seis horas (das nove da noite às três da manhã), sem interrupções, com os actores, tradutores, teóricos, encenadores, académicos e outros artistas e figuras públicas da cidade do Porto a revezarem-se nas estantes de leitura, nessa noite fria de Dezembro, sala a meia-luz, tom litúrgico, vozes que pregavam.

Uma oratória complexa sobre a queda do homem na perspectiva seiscentista de um republicano numa Inglaterra absolutista monárquica; a luta entre o bem e o mal, a origem e o destino das coisas, o livre-arbítrio e a providência, num desenvolvimento teológico, e portanto político, daquilo que era já indiciado nas figuras da galeria vicentina, ecoando (literalmente, pelo grande teatro) de forma diversa todas as grandes figuras da história da salvação comuns às duas obras, contextos, geografias e línguas tidos em conta.

Das minhas muitas participações em trabalhos do Teatro Nacional São João, exclusivamente na “regência” do meu muito querido Nuno Carinhas, talvez o mais educado e gentil encenador com todos os actores com quem o vi trabalhar, este evento (como se vulgarizou agora dizer), este acto de fé, paralelo à programação oficial, terá sempre em mim um lugar cativo.

E que lugar é esse?

O do ofício das palavras e das noites de trevas sem fim, noites frias de Inverno, noites de uma cidade que não é a tua, mas de uma casa que aprendeste a amar e de onde não te agrada sair, após a função cumprida; também o lugar onde o cénico é entendido de uma forma abrangente, não reduzida a palco de justiça social ou a tendência ideológica engagé, mas a lugar da maravilha, lugar do grande teatro do mundo, como em Calderón; um paraíso perdido e retomado em cada noite de espectáculo, um sítio para a queda (Lost Paradise, no sentido de Milton) mas também para a glória do humano.

Fria e cálida noite de Dezembro, corria o ano da graça de 2009. Não me vou esquecer.

Parabéns, Teatro Nacional São João.

*Ator, encenador.

_

14 Dezembro 2009
Teatro Nacional São João

Paraíso Perdido

de John Milton | leitura dirigida por Nuno Carinhas e Daniel Jonas
produção Teatro Nacional São João

_

in O Elogio do Espectador: 100 espetáculos, 100 testemunhos, 100 fotografias Cadernos do Centenário | 1

_

fotografia João Tuna