“Tornar-se mais pesado. Ser mais leve.”
Em memória de Francisco Morão Dias
O Teatro Nacional São João está de luto. Perdemos hoje um dos nossos mais queridos e fiéis espectadores. Perdemos um amigo: Francisco Morão Dias. No São João, ocupava habitualmente o lugar D8, na tribuna. Era ocasionalmente implacável na apreciação dos espectáculos, mas amiúde excedia-nos em entusiasmo, mesmo com produções que nada deviam ao teatro literário que tanto amava. Conhecia e tratava os nossos colegas da Bilheteira e Frente de Casa pelo nome, frequentava o Centro de Documentação, demorava-se para conversar, escrevia-nos cartas – escarninhas, humoradas, comoventes. Colaborou em algumas circunstâncias com o nosso departamento editorial. Era dono e cultor de uma biblioteca imensa, mas altamente selectiva. Robert Walser, Franz Kafka, Bruno Schulz, Cristina Campo e Etty Hillesum estavam entre os seus autores de eleição, mas tinha tantos. No teatro, certamente Beckett e Claudel. Emprestava-nos livros, cuja devolução oportunamente reclamava. Ofereceu-nos muitos. Na juventude, fez parte do TEUC – Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra. Estudou Direito, mas nunca concluiu o curso. Gostava de dizer que não lamentava as duas ou três cadeiras que tinham ficado por fazer, mas as vinte que tinha feito. Foi publicitário e olivicultor. Era convictamente católico. Escrevia admiravelmente e nunca publicou um livro. Escreveu-nos uma carta sobre o monólogo, que não hesitámos em incluir no nosso “Enciclopédia Mínima: Uma Antologia de 100 Textos”, editado em 2022. Era no teatro que se sentia genuinamente feliz. Classificou o São João como Wunderkammer, um armário das maravilhas, mas era assim que entendia o próprio teatro. Tinha o sonho de que o São João produzisse “Tête d’Or”, de Paul Claudel. Não chegámos a fazê-lo, talvez porque alguns actos de amor cheguem demasiado tarde. Tinha um ex-líbris, um passo de Paul Celan, carimbado na página de rosto dos seus livros: “Schwerer werden. Leichter sein.” Mudado para português: “Tornar-se mais pesado. Ser mais leve.” Poderia também ser o lema de um Teatro Nacional.
Pedro Sobrado
15 de julho de 2023